Feridas abertas: uma visão sofrida do nordeste brasileiro

Para marcar o centenário de seu nascimento, o “Jornal do Commércio”, de Recife, veiculou um caderno especial chamado “Feridas Abertas da Fome”. A reportagem seguiu os caminhos da fome, baseando-se em estudos e mapas elabordos, há cinquenta anos, pelo médico e geógrafo Josué de Castro.

Josué de Castro nasceu no Recife no ano de 1908. Formado em medicina, dedicou todas as suas energias em prol da construção de um mundo livre da mais cruel e aviltante calamidade social: a fome. Condenou com veemência a conspiração de silêncio que, na mídia, nas academias e nos parlamentos, teimava em não abortar a questão da fome no país. A inserção da temática da fome no panorama político, científico e moralno Brasil deve-se aos seus incansáveis esforços. A seu respeito afirmou Darcy Ribeiro: “Josué é uma das pessoas que eu mais admiro.Eu digo mesmo que Josué é o homem mais inteligente e brilhante que eu conheci…” Travou a sua batalha pela erradicação da fome desde o começo dos anos 30 até a década de 70, vindo a falecer em 1973. Entregou sua existência efêmera de sessenta e cinco anos de vida a uma das causas mais nobres, – a promoção da dignidade humana.

Pela enorme consideração e cuidado que sempre manifestou com os pobres, o médico pernambucano é lembrado hoje como o profeta dos excluídos. Em setembro de 2008 comemorou-se o centenário de nascimento de Josué de Castro. Influente médico, professor, sociólogo, escritor, intelectual, humanista, ativista brasileiro, nordestino, humano. Para marcar o centenário de seu nascimento, o “Jornal do Commércio”, de Recife, veiculou um caderno especial chamado “Feridas Abertas da Fome”. A reportagem seguiu os caminhos da fome, baseando-se em estudos e mapas elabordos, há cinquenta anos, pelo médico e geógrafo Josué de Castro.

Uma equipe formada pelo fotógrafo Arnaldo Carvalho, pela repórter Ciara Carvalho, e pelo motorista Reginaldo Araújo rodou quase dez mil quilômetros, em quinze dias, pelos nove estados do nordeste do Brasil. O que eles testemunharam, – o seu contato com as pessoas “invisíveis” aos olhos da nossa sociedade -, demosntra que ainda temos um longo caminho a percorrer até a realização dos ideais de Josué de Castro. O fotógrafo Arnaldo Carvalho relata: “Não foi fácil fazer esse material. Foi muito cansativo tanto psicologicamente quanto fisicamente…” “Cada localidade visitada era um soco no estômago, atrás do outro…” Veja a seguir um resumo da reportagem que a equipe realizou.

Marta, jovem mãe, moradora da Vila dos Costas, distrito de Natura, Paraíba, rebebe a equipe do jornal na desolação de seu lar. A fome de seus filhos, somada a sua própria fome. Fome de comida, de esperança, de dignidade… No seu povoado, Vila dos Costas, as famílias vivem como refugiados. As terras onde moravam foram inundadas pela barragem de Acauã. O governo levantou as casas no endereço novo, mas esqueceu de levar dignidade para a nova morada. Quando a reportagem pede para conhecer a cozinha de sua humilde casa, descobre que no armário de duas portas tudo o que tem é resto. Restos de fubá, de sal e um pacote abeeto de açúcar. O arroz e o feijão acabaram há um semana. A mulher forte, com um jeito discreto, quase cabreiro, que cria sozinha os filhos e ainda cida de dois sobrinhos, já ao final da visita da equipe de reportagem, desaba em um choro incontido que a todos impressiona. O choro de Marta, nos relata o fotógrafo, não é um cho de humilhação, de resignação, de tristeza por não ter o que comer. De quem aceita o destino porque assim Deus quis. A seu choro não é senão um choro-explosão, um choro-revolta, um choro de indignação e de vergonha porque assim o homem quis.Marta Maria da Silva, 28 anos, é analfabeta e parece ter a exata consciência de que o flagelo da fome, imposto a ela e aos três filhos, não é obra divina. E sim humana. Coisa do homem contra o homem. E isso ela se recusa a aceitar; daí o seu choro incontido. Não há maneira de enxugar lágrimas como estas. Lágrimas que brotam de um coração vitimado pela injustiça. Marta abraça o filho de dois anos. Pequeninas mãos enxugam as suas lágrimas. Quem consola, e quem é consolado? Qual o limite de dor e desalento que um coração humano consegue suportar?… “Ninguém merece passar por isso. Ninguém”, repete Marta… …Antes de esconder-se no quarto, para chorar mais alto e sozinha. A equipe de reportagem precisa partir. Deixa para trás Marta, seus três filhos, e o mar de lágrimas provocadas pela insensatez humana.

Rafael, 2 anos,morador de Ipubi, PE, perdeu a visão do olho direito, devido a forte desnutrição.Quando chegou ao hospital, Rafael era só pele, osso e feridas. E a nata que lhe cobria os olhos, – a remela da fome. Os cuidados médicos infelizmente puderam salvar o olhar de um dos olhos apenas. Ana Vitória, 1 ano e 2 meses, que mora em um município vizinho, teve menos sorte ainda, perdendo a visão dos dois olhos, devido a forte desnutrição. Existe uma cegueira moral e social, anterior à cegueira que se apodera dos pequeninos olhos de Rafael, de Ana Vitória e de outras tantas crianças. Algumas crianças, na loteria biológica, não são comtempladas com uma família abastada materialmente. Ninguém escolhe a família em que nasce. É por isso que o exercício da caridade se faz tão importante. Rafael, como muitas outras crianças da região, vive a base de garapa, – água com farinha -, e raramente bebe leite. Habitantes de um outro planeta, – o planeta da exclusão, da miséria e da fome. A mãe de Rafael lhe oferece o almoço, um ralo mingau de arroz. Diante das prateleiras todas vazias, a repórter pergunta o que a família irá jantar naquela noite. A jovem mãe, desconversando, responde: “Comeremos qualquer coisa, antes de deitar”.A repórter, não satisfeita com a resposta evasiva, repete a pergunta. Desta vez, como resposta, apenas o silêncio. Um doloriso silêcio, sinônimo de desalento, desamparo, fome… Pequeninos olhos que estarão em jejum, quando amanhã pela manhã se abrirem. Esta infinita canseira, este castigo impiedoso, essa noite sem remédio, essa eterna espera sem fim…

O tempo passa igual para todos, mas não os seus efeitos. O peso de um dia é mais severo para uns do que para outros. Algumas pessoas passam por tanto infortúnio nas suas vidas que não estariammentindo acaso dissessem: Tenho morrido muitas vezes. Tenho morrido mil mortes… Quanto tempo ainda levará até que aprendamos a ler nos olhares aquilo que não se traduz por palavras?… Em quinze dias a equipe de reportagem percorreu quase dez mil quilômetros, pelo nove estados do nordeste do Brasil. Visitou lares famintos de um nordeste árido e seco de esperança. Algumas das localidades marcadas pela fome e pe
la desolação encontram-se listadas dentre os municípios tidos como modelo pelo programa “Fome Zero”. O que revela quão distante estamos de uma sociedade onde a dignidade da vida seja uma realidade para todos. Apesar das incipientes vitórias alcançadas no combate à miséria nos anos recentes, infelizmente, ainda é vasto o caminho a ser percorrido acas queiramos que “justiça social” deixe de ser um vago conceito e se tranforme em viva realidade. A legião de excluídos no Brasil soma quase 14 milhões de pessoas. Catorze milhões de bocas incertas da comida de amanhã.

Compartilhe essa mensagem com outras pessoas. Em especial com a classe política, com governantes e dirigentes. De modo que, quando entre uma CPI e outra no confronto de seus gabinetes estiverem, ao menos saibam da existência das vidas aqui relatadas: a Maria que espera, a Marta que chora. A pequena Ana Vitória, que, quando em breve começar a dar os seus primeiros passos, haverá de tatear o seu caminho pelo mundo, uma vez que a fome lhe secou os olhos ainda criança pequenina. As desigualdades sociais se tornaram tão cruelmente excludentes que aqueles que vivem à margem da sociedade, por falta da mínima instrução, e devido à luta diária que travam pela sobrevivência, não sabem nem por onde começar para que tenham os seus mínimos direitos observados. Se nós, que fomos comtemplados com o conforto material e com tantas oportunidades nesta vida, nos calarmos, eles certamente serão relegados ao pleno esquecimento. Apenas por meio da consciência social poderemos amenizar o sofrimento causado pela miséria que, em pleno século XXI ainda cega, castiga e mata… Crianças que nada podem fazer senão esperar. Uma longa e penosa espera. Por trás das frias estatísticas oficiais que camuflam a verdade, existem tragédias particulares que se perdem na frieza dos números. As emboscadas das estatísticas oficiais revelam com pompa as melhoras econômicas e sociais, mas escondem e não fotografam os rostos daqueles que, a despeito de tudo, ainda sobrevivem ao lado mais rasteiro dos gráficos. 14 milhões de brasileiros. Por quanto tempo ainda ignoraremos os nossos irmãos castigados pela miséira e pela fome? Aquele cujo coração se dispõe a ajudar encontrará os meios necessários.

Existem projetos sérios, como o “Unicef” e o “Semi-árido brasileiro”, que atua nos nove estados do nordeste. Entre outras metas, o programa busca elevar a qualidade do ensino numa região onde 350 mil crianças entre 10 e 14 anos estão fora da escola. Sem contar que, diante das precárias estruturas, muitas vezes as crianças que vão às aulas nada aprendem. Para conhecer mais sobre o programa Unicef, acesse: www.unicef.org.br (clique em “Onde atuamos” e “Semi-árido”). O programa apenas alcançará seus objetivos com a participação da sociedade. Se cada um de nós cuidarmos de nossa família biológica apenas, as crianças necessitadas jamais consiguirão se levantar do chão. Pois elas precisam da mão amiga de um estranho que as enxergue, que se compadeça e socorra. Devemos ter em mente que aos praticarmos a caridade e a compaixão estamos regando e fortalecendo a também a nossa própria alma…É no encontro com o oprimido, o sedento, o faminto, o nu que nos aproximamos, por meuo do gesto amoroso, do nosso criador.Quem ama não mata, não humilha. Quem ama socorre, ampara. Frágeis corpos modelados pela fome. Crianças que falam a nossa língua, mas que habitam um mundo tão distante. O mundo da exclusão, da espera, da resignação, da fome. Sempre que o amor e a justiça se fazem ausentes, resta a desolação, a seriedade precoce impressa nos olhares. A indisfarçada vergonha dos que, sentindo fome, não têm o que comer. Um punhado de farinha de mandioca ralada. Mais uma noite, seguida por outro dia igual. Dores caladas. Olhares que pedem esperança, dignidade. Que a espera por aquilo que sacia a fome, e que concede a dignidade, possa ser breve. Para saber mais sobre o programa “Unicef” e “Semi-árido brasileiro”, e sobre como ajudar, escreva para [email protected] ou [email protected]. Um outro mundo é possível. Quem planta haverá de colher.

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