[Entrevista] Crime e Preconceito

“Quem associar pobreza a violência estará, involuntária e inadvertidamente, justificando o procedimento do policial”, afirma Luiz Eduardo Soares. Entrevista concedida ao Le Monde Diplomatique Brasil na Edição de agosto de 2010.

por Silvio Caccia Bava

DIPLOMATIQUE – Quais as causas da violência e da criminalidade que assolam de maneira crescente o Brasil?

Luiz Eduardo Soares* – Não creio que se deva falar em causas, porque evocá-las implica supor que sua existência provoca efeitos, entre os quais o fenômeno denominado “a violência” ou “a criminalidade”. Alguns responderiam: pobreza. Eu refutaria, apontando para o imenso oceano de pobreza no Brasil e dizendo: eis aí milhões de pobres vivendo em paz e respeitando as leis. E os banqueiros, empresários e políticos presos e condenados? Não cometeram crimes? São ricos e educados e cometeram crimes.

Há países muito mais desiguais ou pobres do que outros com muito menos violência e crime, assim como há regiões no interior de um mesmo país que apresentam essas mesmas características, invertendo o chavão. Quem associar pobreza a violência estará, involuntária e inadvertidamente, justificando o procedimento do policial que, entre o pobre e o rico, escolhe abordar e revistar o pobre. Ou seja, uma teoria social que eleja a pobreza como causa acaba por endossar o estigma, o preconceito.

Outro problema grave embutido nos pressupostos da pergunta é a ideia de que violência e criminalidade possam ser referidas no singular, como se houvesse uma só forma ou como se todas as formas pudessem ser sintetizadas em uma palavra ou um conceito. A suposição é falsa e serve à reprodução do senso comum, cujos pecados são a generalização e o reducionismo, ambos plataformas convenientes aos preconceitos e a visões conservadoras, úteis à reprodução das práticas estatais (na área da segurança e da política criminal) que se têm revelado opressivas, brutais e iníquas.

De qual violência estamos falando? Doméstica, contra a mulher, racista, homofóbica? Briga de trânsito? Entre vizinhos? No futebol? Entre gangues ou máfias? Ataques terroristas por motivos étnicos, religiosos, políticos? Ou estamos falando da violência envolvida na apropriação privada de recursos públicos que salvariam vidas? Ou nosso objeto é a brutalidade policial? Ou de traficantes e milicianos? Ou o foco é o bullying ou a humilhação a que os mais poderosos por vezes submetem os mais vulneráveis, sobretudo em sociedades desiguais como a nossa? Ou nos referimos à violência sofrida pelos que não têm acesso à Justiça?

Em cada caso, os dramas são diferentes, seus atores são distintos, os processos físicos, psíquicos, simbólicos, culturais, emocionais, ambientais, sociais e econômicos são diversos. As lógicas sob as múltiplas dinâmicas variam e, portanto, mesmo que considerássemos razoável empregar a linguagem da causalidade, teríamos de identificar uma multiplicidade enorme de causas e efeitos.

Outro ponto: criminalidade. Ora, crime não nasce como a vegetação ou o cabelo, a unha ou a espinha. Não é uma coisa, um evento, um acidente, fenômeno ou fato. É uma qualidade que certos tipos de sociedade atribuem a determinadas práticas, em momentos precisos de sua história. A qualidade é a da transgressão, a qual supõe o estabelecimento de leis. Ilegal ou criminoso é o que se desvia do padrão ditado por normas legais. Não há um sem o outro. E, como as leis variam de sociedade para sociedade e mudam radicalmente com o tempo, por razões as mais diversas, também o crime varia.

Adultério feminino no Irã contemporâneo é crime punido com a morte. Em certos estados norte-americanos, o sexo anal heterossexual era crime até a década de 1950. Valores associados a circunstâncias políticas e econômicas ensejam legislações inteiramente diferentes. Por isso, seria um absurdo atribuir a qualquer fator a causa da criminalidade, ainda que se adotasse a linguagem das causas e dos efeitos. Mais apropriado seria indagar sobre as causas das leis que criminalizam ações humanas, ao sabor da história.

Assim como há inúmeras modalidades de práticas e experiências passíveis de merecer a designação genérica de “violentas”, e tantos tipos de crimes quantas leis houver, é vaga e incerta a ideia de uma “criminalidade violenta”.

Dito isso, varrido o caminho de pressupostos perigosos que embotam a reflexão crítica, podemos recolocar a questão, agora em outros termos: haveria fatores cuja presença facilitasse ou estimulasse a prática de determinados atos justificadamente considerados violentos e classificados como criminosos no Brasil, hoje?

Claro que sim. Desde que jamais subestimemos a importância da agência humana, do sujeito individual e de sua liberdade, a despeito das inúmeras e poderosas restrições e dos inevitáveis condicionamentos. Desde que compreendamos esses fatores como variáveis cuja presença favorece a prática de atos criminais violentos e que, portanto, devem ser evitadas, se desejamos reduzir as chances de que ocorram.

Podem ser definidos como fatores facilitadores da violência doméstica contra as mulheres: uma cultura machista que, tácita ou explicitamente, autoriza agressões físicas e/ou psicológicas e morais, associada à falta de apoio institucional na defesa das mulheres e somada à ingestão abusiva de álcool. Outro exemplo, no caso de fatores facilitadores do recrutamento de jovens do sexo masculino para gangues armadas, praticantes de homicídios: evasão escolar; depreciação da autoestima; experiências traumáticas em casa, na escola ou na comunidade; associação cultural entre masculinidade e brutalidade; ausência de alternativas atraentes de lazer; falta de perspectivas de acesso a emprego e renda; expectativa de reprodução da vida economicamente subalterna e desvalorizada dos pais; contraste entre a convocação universal ao consumo e à posse de fetiches (que valorizam, identificam e, ilusoriamente, distinguem e singularizam) e o veto, na prática, ao ingresso nessa festa hedonista e sedutora.

DIPLOMATIQUE – Como você interpreta a existência de 35 mil mortes por ano, por armas de fogo, no Brasil? Quase todos são muito jovens, negros ou pardos, e pobres. Existe algo como a criminalização da pobreza?

Soares – A criminalização da pobreza existe. Claro que sim. Os dados são eloquentes. Basta consultar os relatórios anuais das Varas da Infância e da Juventude, Brasil afora. Há mais de 15 anos tem aumentado o número de casos envolvendo jovens menores de 18 anos e o uso ou comércio de drogas. A imensa maioria dos jovens identificados é pobre. A presença entre eles de negros não retrata com equilíbrio a distribuição na população, isto é, há evidente concentração de negros cumprindo medidas socioeducativas. Por quê? Os meninos pobres consomem mais drogas ilícitas? Comercializam mais?

Quando jovens de classe média são pegos com drogas, suas famílias compram dos policiais sua liberdade – o que é mais oneroso e complicado para famílias pobres que, em geral, nem sequer são despertadas no meio da madrugada por telefonemas atenciosos e preocupados de policiais que, em tom paternal, solicitam o comparecimento do pai para uma conversa acerca de drogas e juventude, com especial foco em seu filho adolescente! Ou então a atitude de u
m juiz que tende a empregar a liberdade de interpretação que lhe facultou a “flexibilização” da lei, saudada em 2006 como um avanço. Como aplica essa liberdade? Se determinada quantidade de drogas é encontrada com um jovem de classe média, mesmo sendo superior ao consumo imediato, o magistrado tende a aceitar a versão de que se trata de uma provisão para muito tempo, porque o jovem quer manter distância dos traficantes, ou que é provisão para uma festa circunstancial. A mesma quantidade com jovem pobre tende a ser interpretada como tráfico. As justificativas, aqui, não mais se aplicam.

Enviado a uma entidade socioeducativa, o jovem pobre começa a pavimentar seu caminho para as margens, por razões sobejamente conhecidas. A hipócrita política de drogas tem servido apenas à criminalização dos pobres e à corrupção policial (em sociedade com as famílias abastadas que não querem seus filhos enredados nesse novelo perverso).

Quanto ao número estarrecedor de homicídios dolosos, praticados no Brasil com armas de fogo, e que vitimizam sobretudo jovens pobres do sexo masculino, entre 15 e 24 anos, frequentemente negros, a questão é outra. Eles formam um grupo mais vulnerável ao recrutamento, pelos motivos expostos na resposta anterior.

DIPLOMATIQUE – Há distintas análises sobre o papel da polícia. Uns dizem que ela deve agir para fazer respeitar as leis, garantir a ordem pública. Outros dizem que seu papel é manter as classes subalternas sob controle, submissas. Na sua opinião, a análise de suas práticas leva a que conclusão?

Soares – O que deve ser muitas vezes difere do que é. No caso das polícias brasileiras, difere intensamente, profundamente, dramaticamente. O que são e o que têm sido as polícias brasileiras, de maneira geral e na maior parte de suas respectivas histórias? Instrumento de opressão dos mais pobres e dos negros, a serviço do Estado autoritário e excludente, em ambiente de despudorada iniquidade no acesso à Justiça.

Os trabalhadores policiais, frequentemente, são antes vítimas das instituições em que atuam do que voluntários e conscientes algozes de seus irmãos de classe.

Mas, o que deve ser a polícia? Para quem tem convicções democráticas e defende, além da liberdade, a equidade no acesso à Justiça, à educação, à saúde, às oportunidades, a polícia deve ser instrumento de defesa dos direitos e das liberdades constitucionais, zelando para que alguns não violem à força ou por subterfúgios os direitos alheios. Se agir dessa forma, sempre protegendo a vida e os direitos, a polícia (qualquer que ela seja) recorrerá à força comedida e adequada a cada caso apenas para impedir que um inocente se torne vítima.

A própria palavra repressão, sempre exorcizada como um espectro diabólico, ligada a tudo o que é negativo, mostra outra face quando pensamos a partir de outra perspectiva. Por exemplo: uma criança está prestes a ser violada por um agressor. Impedir a brutalidade significa oprimir o desejo e a liberdade do agressor ou significa defender a criança, a vida, os direitos humanos e constitucionais? A repressão do gesto violador, a repressão do linchamento, do racismo, da violência perpetrada contra a mulher ou contra homossexuais, a repressão que protege o mendigo aviltado na calçada, a repressão que bloqueia o uso da arma para matar, que evita o assassinato, o sequestro, a tortura, a apropriação privada de recursos públicos pela corrupção, lavagem de dinheiro. Essa é a repressão que preserva a vida, os direitos humanos e constitucionais, as liberdades. A palavra é medonha. Causa repulsa e por bons motivos. Mas cria a falsa imagem de que todo uso comedido da força é contrário aos direitos humanos e às liberdades.

A polícia é e será uma instituição indispensável enquanto indispensáveis forem o Estado e o monopólio legítimo dos meios de coerção.

Quando os seres humanos conseguirem conviver em paz, respeitando-se mutuamente, em plena liberdade autogestionária, a partir de normas consensuais em bases de efetiva equidade, quando e se um dia esse sonho se realizar, não haverá mais Estado, classes, nem as instituições do Estado, inclusive a polícia. Mas, até lá, conviveremos com a necessidade de dispor de meios públicos de defesa contra violações, para que não recuemos ao tempo anterior às polícias, tempo de linchamentos e milícias locais, baronatos que faziam suas leis e se regiam pela vendetta – alguma semelhança com certas realidades cariocas não são mera coincidência…

Se não dissermos que polícia queremos, outros dirão. Em nosso modelo de polícia para a democracia e os direitos humanos, para a cidadania e a equidade, sob controle externo e com transparência, sem bias de classe e cor, tem de constar, com ênfase, a valorização dos policiais, cidadãos, trabalhadores, seres humanos que merecem reconhecimento público, salário decente e tratamento digno.

Quem confundir o ser com o dever ser, neste caso, correrá o risco de condenar o que é à imutabilidade, de matar na fonte os projetos de mudança e de atar o futuro aos rastros do passado.

DIPLOMATIQUE – Como podemos entender a existência, tolerada por governos, de grupos de extermínio, esquadrões da morte, e mesmo de atos de violência como o massacre do Carandiru, ou as próprias milícias que surgem no Rio de Janeiro, controlando territórios e enfrentando o narcotráfico. Os policiais têm licença para matar? A impunidade dos seus crimes não sugere isso?

Soares – Por trás de tudo isso estão a tolerância com a execução extrajudicial e o desprezo pela legalidade constitucional quando está em jogo a criminalidade praticada pelos pobres, os descartáveis, os alvejáveis.

A história das milícias no Rio de Janeiro, por exemplo, é objeto do livro Elite da tropa 2, que acabei de escrever com Cláudio Ferraz, André Batista e Rodrigo Pimentel, e que será lançado dia 8 de outubro, junto com o filme Tropa de elite 2.

Milícia remete, em sua gênese, à segurança privada, à degradação de instituições políticas e policiais, a políticas de segurança desastrosas. Hoje, elas são o que há de pior, de mais bárbaro e mais grave. Constituem o que, tecnicamente, se chama “crime organizado”. São máfias formadas, sobretudo, por policiais. Elas já ocupam espaços políticos. As UPPs, no Rio, tão celebradas – as quais retomam nossa política antibelicista e comunitária dos Mutirões pela Paz (1999) e do GPAE (2000/2001) –, não sobreviverão se as polícias não forem transformadas radicalmente.

Hoje, o Estado, no Rio de Janeiro, por meio de suas polícias, está, em função das milícias, metido no pântano até os quadris, mas mantém o prumo, a elegância e o sorriso suave dos delicados. Acontece que o pântano suga o corpo como um vampiresco monstro ctônico. As promissoras UPPs serão tragadas para o fundo em pouco tempo, como aconteceu nas duas experiências anteriores, porque a hegemonia nas polícias impõe limites estreitos ao projeto.

DIPLOMATIQUE – Você acha que a atual estrutura das corporações policiais tem possibilidades de reforma, ou seria melhor dissolver as polícias e começar tudo de novo? Existem condições políticas para isso?

Soares – Temos de começar de novo, respeitando direitos trabalhistas adquiridos e valorizando o conhecimento e a experiência dos milhares de excelentes e honestos policiais que há nas polícias estaduais. Sobre isso tenho escrito muito, há muito t
empo. Quanto às condições, acho que hoje não existem, mas terão de ser criadas. Também analisei as razões de nossas dificuldades nessa área. Para sintetizar, eu diria que ainda não fomos capazes de construir, nem mesmo entre nós, um consenso mínimo que transcenda a dimensão negativa e aponte alternativas realistas, eficientes e realmente capazes de se adequar, na prática, a nossos valores. Nós, os segmentos mobilizados e socialmente comprometidos, radicalmente democráticos da sociedade brasileira, ainda não conseguimos entender que segurança é um direito básico que o Estado tem o dever de garantir, universalmente, com equidade. Isso foi compreendido no campo da saúde, e daí nasceu o SUS, alavancado por movimentos sociais e de profissionais suprapartidários. O mesmo se passou nos campos da assistência social (veja a Loas) e da educação. Na segurança ainda há resistência a reconhecer que a questão não se esgota nos temas da violência policial contra os pobres e da criminalização da pobreza. O tema abrange outras formas de violência que atingem todos os grupos sociais, inclusive atos de pobres contra ricos e contra policiais. O pobre nem sempre é vítima. Policial nem sempre é algoz.

Direitos humanos, que defendemos e devemos sempre defender intransigentemente são, por definição, de todos. Não podemos admitir suas violações por quem quer que seja contra quem quer que seja, por mais que compreendamos motivações, processos históricos, dinâmicas sociais, sofrimentos e traumas, experiências intersubjetivas negativas.

Em geral, o menino pobre que se arma e se lança numa vida de violência começa como vítima, torna-se algoz e acaba como vítima. Entender e sentir compaixão, inclusive pelos algozes, não pode nos levar a rasgar os compromissos com os direitos humanos de todos. Creio (espero) que um consenso nesse sentido será em breve possível e viabilizará mudanças profundas. O consenso se dará em torno da defesa da vida e dos direitos humanos, e da equidade no acesso à Justiça. Ou seja, em torno da ideia de que são inaceitáveis a brutalidade policial e a brutalidade de qualquer cidadão contra outro ou outra, a não ser no caso extremo de legítima defesa.

A excelente notícia é que 70% dos policiais brasileiros se declaram contrários ao atual modelo de polícia, em que o município é esquecido, a União esvaziada e os estados aquinhoados com duas polícias mutuamente hostis, cada qual destinada a cumprir uma parte do ciclo do trabalho policial. Uma esquizofrenia absurda que só poderia gerar ineficiência, desarticulação e o quadro inadministrável que temos hoje em boa parte das polícias. O dado foi obtido na pesquisa “O que pensam os profissionais da segurança no Brasil”, que realizei em 2009 com Marcos Rolim e Sílvia Ramos, com apoio do Ministério da Justiça e do Pnud, em que foram ouvidos 64.130 policiais e demais profissionais da segurança pública de todo o país.

DIPLOMATIQUE – Se o problema é tão grave, por que não se investe na qualificação da polícia, salários, equipamentos, treinamento, seleção mais aprimorada, requisito de maior escolaridade etc.?

Soares – Isso tudo seria importante, mas estaria longe de resolver o problema. Temos de implodir a estrutura organizacional legada pela ditadura, fixada no artigo 144 da Constituição, que determina o modelo policial. Além disso, precisamos de políticas de segurança cujas prioridades sejam a vida, os direitos e as liberdades com equidade.

Silvio Caccia Bava é editor de Le Monde Diplomatique Brasil e coordenador geral do Instituto Pólis.

*Luis Eduardo Soares – Antropólogo e cientista político, ele coordenou a área de segurança pública do Rio de Janeiro entre 1999 e 2000 e foi Secretário Nacional de Segurança Pública em 2003

Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil

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