Gestão Compartilhada Popular e Solidária

O que está em jogo não é um convênio mais ou menos burocratizado, é a possibilidade de utilizarmos o recursos públicos para finalidades públicas, contrariando a lógica capitalista-neoliberal.

 

O diálogo sobre a gestão compartilhada além de um de seus elementos constituintes é imprescindível, para gradativamente nos acertarmos sobre como as decisões são tomadas na Rede de Educação Cidadã. Principalmente sobre o que temos “governabilidade”, sobre o que podemos mudar nos procedimentos de gestão e sobre o que é normatizado, portanto, pré-estabelecido pela legislação.

 

As leis e normativas que regulamentam o repasse de recursos públicos para entidades privadas, estados e municípios nos impõe vários procedimentos (Lei 8666/1993 e Portaria Interministerial 127/2008 são algumas delas). Em geral são procedimentos elaborados a partir de um referencial de controle e fiscalização, sem nenhuma preocupação com a construção de espaços democráticos, ou que adotem o que chamamos de “gestão compartilhada”, ou que assumam o princípio da ação para a autonomia. Seguem em geral uma lógica de contratação de serviços, que separa a organização, preparação e mobilização da execução. Para o caso da Rede é como se o importante fosse somente o momento da oficina, ou do encontro, desconsiderando-se tanto a sensibilização e mobilização prévia às atividades quanto os desdobramentos concretos das mesmas.

Como atuamos diretamente com um amplo leque de pessoas que se relacionam em grupos sociais, chamados de “vulneráveis”, para promover espaços emancipatórios, fugimos totalmente à forma como a legislação foi elaborada. As leis não foram feitas para benefício do povo ou para construção de espaços de autonomia e fortalecimento da organização popular. A educação e as atividades do projeto da Rede, do ponto de vista da legislação são formas de capacitar, de melhor instruir as pessoas para que elas se enquadrem de forma mais eficiente no sistema, justamente o que não queremos.

O importante, neste cenário, é diferenciar o que podemos fazer e decidir sobre, e o que já vem decidido pelas leis. É isso que está em debate.

Quando se reivindicamos que os convênios da Rede sejam feitos por muitas mãos, não podemos desconsiderar o esforços de cinco encontros nacionais de gestão com este objetivo.

Curioso é que sempre repetimos o problema do “marco legal”, das leis. Mas o esquecemos ao fazer críticas à burocratização da Rede para o que é mais fácil achar culpados entre os nossos do que em leis e regulamentos que não temos como personificar. Esta é uma grande armadilha ideológica do estado e das instituições sociais, que tudo regulamentam, que tudo observam e que tudo controlam, mas que não podem ser identificadas com uma pessoa, um indivíduo. Nosso inimigo é difuso, porém muito bem organizado. Ou nos voltamos e nos mobilizamos para alterar as leis e próprio estado moderno de direito, e permitir que recursos públicos sejam utilizados de forma menos burocratizada por projetos emancipatórios, ou nos perpetuaremos em dar “murro em ponta de faca”, nos acusando internamente de ser muito burocráticos.

Há um dilema em todas a regras que pactuamos na organização de ações emancipatórias, não assistencialistas. De um lado há uma tensão permanente de educadores e grupos de base para flexibilização dos procedimentos, intermediariamente fica a entidade gestora dos recursos, e no nosso caso o Talher Nacional, buscando fazer com que estas demandas cheguem e sejam discutidas pelos órgãos que repassam e controlam o repasse de recursos, no nosso caso a SDH e o TCU. O que depende da decisão destes órgãos e o que está estabelecido em lei, também depende de interpretação das leis. Contudo, há um clima de interpretação conservadora da legislação, pois o discurso do bom uso do recurso do público, as acusações de que o estado e a máquina pública são ineficientes, de que o estado gasta muito, é preponderante na sociedade e na mídia, e etão diretamente relacionados com um paradigma mercadológico de utilização dos recursos. Isso nos empurra cada vez mais para procedimentos burocratizados, pois o objetivo desta forma de utilização de recursos não é o bem comum, mas sim o lucro individualizado.

Neste entreveiro temos que dialogar com a economia solidária, e construir um novo paradigma de gestãod e recursos que supere o modelo de concentração de poder, para um modelo descentralizador, democratizador e que valorize a diversidade.

De um lado temos que derrotar a burocratização do uso do recurso, de outro não podemos sair um milimetro da linha (das normas legais) pois a SDH e o TCU estão de olho, mas principalmente a mídia está de olho. Este dilema é como uma encruzilhada em que devemos escolher por onde seguir:

1. De um lado podemos utilizar os recursos como achamos que deve ser, buscando fazer o trabalho da forma mais eficiente possível e assim contribuir na construção do poder popular, correndo o risco de sermos vítima da criminalização da mídia e dos órgãos de controle, ou até mesmo do parlamento (vide CPI das ONGs, CPI do MST), o representa um risco.

2. De outro lado, e este é o que estamos adotando, é o de buscar cumprir todas as normas que nos são impostas pela lei e pelos órgãos de controle (ou seja pelo espírito conservador da legislação) sem que isso prejudique a eficiência do trabalho da Rede. Com isso temos credibilidade, inclusive para lutar pela mudança da lei. Este é o caminho mais difícil, pois além de militantes e conhecedores da educação popular e da política, temos também que ser conhecedores do Estado e das leis que dele emanam. Justamente para entender que estas leis não emanam do povo como está escrito na Constituição. O trabalho é maior, contudo, já sabemos que para vencer uma luta é preciso conhecer bem o inimigo.

Esta é a estratégia adotada pela Rede, conhecer o Estado, para poder mudá-lo, conhecer a sociedade para revolucioná-la.

Este artigo é um convite ao estudo e ao entendimento de como o Estado tem funcionado, como herança de 500 anos de colonização, para melhor identificarmos nossas formas de ação, o que é preciso ser alterado nas leis e no Estado, o que é culpa nossa, o que é culpa da legislação e da atuação dos órgãos de controle, e o que é culpa da hegemonia conservadora em nossa sociedade.

O que está em jogo não é um convênio mais ou menos burocratizado, é a possibilidade de utilizarmos o recursos públicos para finalidades públicas, contrariando a lógica neoliberal e revertendo a predominância desta na ação do Estado e do Governo Brasileiro, enquadrando os verdadeiros inimigos da emancipação social, que estão do lado do capital. E não nos digladiando internamente como se as exigências da legislação ou do TCU (partes conservadoras de um estado a 500 anos a serviço das elites) fossem exigências de uma entidade âncora ou da equipe de governo que acompanha o projeto da Rede.

Não digo, com isso, que não devemos nos manifestar, isso é essencial, pois só o diálogo pode nos fortalecer, mas acho que o foco do debate deveria ser outro. Pois os desafios à Rede de Educação Cidadã são enormes e tem haver com a forma da sociedade se organizar, a forma com as pessoas pensam que se organiza e a
forma como nós queremos que se organize, muito além da forma como podemos ou não utilizar os recursos disponíveis.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

1 + 8 =