Escrito por: Augusto Buonicore Historiador, mestre em ciência política pela UNICAMP, Secretário-Geral do Instituto Maurício Grabois (IMG), membro do conselho editorial das revistas Princípios, Debate Sindical e Crítica Marxista.
Graucus Babeuf, socialista e líder da conjuração dos iguais, afirmou provocativamente: o robespierrismo é a democracia, e essas duas palavras são absolutamente idênticas. Ressuscitando o robespierrismo, pode-se estar seguro de estar ressuscitando a democracia. Para os nossos liberal-democratas essa tentativa de vincular o nome do homem que implantou o terror jacobino ao termo democracia se constitui numa verdadeira heresia. No entanto, o revolucionário francês estava absolutamente correto. Lembremos que, por exemplo, a constituição jacobina (1793) foi a primeira a instituir o sufrágio universal masculino.
Podemos, também, incluir nesta lista de precursores da democracia moderna Babeuf, Buonarotti, Blanqui, os cartistas ingleses, os legítimos representantes dos trabalhadores revolucionários nas últimas décadas do século XVIII e nas primeiras do século XIX.
Essa origem remota da democracia política moderna foi habilmente acobertada pela historiografia liberal. A operação consistiu, de um lado, em estabelecer um fio de continuidade entre os teóricos liberais e a democracia política moderna. Os pais da democracia ficaram sendo Locke, Mill, Tocqueville e os federalistas norte-americanos. Se o liberalismo e a democracia eram irmãos siameses, os pais só poderiam ser os mesmos. Não importa que parte deles fosse contra o sufrágio universal, o direito de organização e alguns chegassem mesmo a justificar a escravidão.
Por outro lado, cabia desqualificar aqueles que buscavam colocar um sinal de igualdade entre democracia e soberania popular. Esses, entre os quais se incluía Rousseau, eram acusados de terem plantado os germes do que viria a ser conhecido como totalitarismo.Setores importantes da esquerda também contribuíram para que a operação ideológica realizada pelos liberais pudesse ser bem sucedida. Colaboraram ao atribuir, exclusivamente, à burguesia a criação de todos os mecanismos (e institutos) da
democracia política, entendidos como simples instrumentos de ludíbrio dos trabalhadores. Ou seja, a burguesia conscientemente criou a democracia para neutralizar o ímpeto revolucionário das massas trabalhadoras e incorporá-las, de maneira subordinada, à ordem do capital.
O debate em torno da relação existente entre democracia política e socialismo tem mais de um século. Destacam-se os confrontos teóricos e políticos ocorridos entre
Bernestein – pai do revisionismo marxista – e a maioria dos dirigentes da social-democracia européia, entre os social-democratas (reformistas) e os comunistas no pós-1914 e, por fim, as polêmicas no interior do próprio movimento comunista internacional. Lembremos apenas a polêmica entre Rosa de Luxemburgo e Lênin pós-revolução russa.
Com a ascensão de Stalin no interior do PCUS, o debate ficou congelado por várias décadas. Mesmo as correntes esquerdistas, especialmente trotskistas, tenderam a
simplificar o debate e reduzi-lo à fórmula: liberalismo = democracia. Pelo menos neste ponto a dogmática soviética dava as mãos à trotskista e as duas jogavam água no moinho
da retórica liberal.
Um exemplo típico dessa visão desqualificadora da democracia foi o discurso proferido pelo secretário-geral do Partido Comunista da Alemanha, Urbhans, quando do
seu julgamento após o fracassado levante de 1923. Perante os juízes afirmou: “As massas nos dirão: é melhor arder no fogo da revolução do que se arrebentar na estrumeira da democracia.” Alguns anos mais tarde as principais lideranças operárias comunistas e social-democratas arderiam nos campos de concentração nazistas e as massas populares nos campos de batalha da II Guerra Mundial. O debate sobre a relação entre democracia e socialismo voltou à tona na década de 1960. Mas foi, sem dúvida, com o surgimento da corrente eurocomunista que ele passou a ter lugar central na agenda teórico-política das organizações da esquerda mundial. Entre os principais expoentes desta nova corrente estavam Marchais, Berlinguer e Santiago Carrilho, respectivamente secretários-gerais dos Partidos Comunistas da França, Itália e Espanha.
Um dos seus marcos fundadores foi o polêmico discurso pronunciado por Enrico Berlinguer em Moscou, durante as solenidades comemorativas aos 60 anos da Revolução de Outubro. Nele o dirigente comunista italiano afirmou: “A democracia é hoje não apenas o terreno no qual o adversário de classe é obrigado a retroceder, mas é também um valor historicamente universal sobre o qual devemos fundar uma original sociedade socialista.”
É nítido o exagerado otimismo de Berlinguer e dos eurocomunistas em geral. A democracia era vista como uma via de mão única na qual apenas os trabalhadores
poderiam avançar. Na verdade ela era uma perigosa via de mão dupla. Ironicamente a opinião expressa no auge do avanço das forças socialistas seria negada pela história
poucos anos depois. A URSS e o próprio partido de Berlinguer deixariam de existir. Uma onda conservadora se espalharia pelo mundo. Pela mesma estrada onde se acreditava
caminhavam as massas populares rumo ao socialismo, agora marchavam as tropas de choque do neoliberalismo triunfante.
O debate chega ao Brasil
Poucos anos depois do polêmico discurso o debate chegou ao Brasil. No interior do PCB formou-se uma influente corrente eurocomunista, composta fundamentalmente por intelectuais. O marco de sua constituição foi a publicação, na
revista Encontros com a Civilização Brasileira, do polêmico artigo de Carlos Nelson Coutinho intitulado A democracia como valor universal. Como podemos notar, o próprio título era de nítida inspiração berliguerliana. No entanto, Coutinho radicalizou ainda mais a tese do comunista italiano retirando o termo historicamente. A democracia deixava de ter um valor historicamente universal e passava a ter valor universal. Esta diferença não é secundária.
O texto de Coutinho foi muito importante, pois repôs com nova energia o esquecido debate sobre o vínculo que deveria existir entre democracia e socialismo. Ele ajudou a arejar o ambiente saturado por certo tipo de dogmatismo. No mínimo, diria provocativamente, ele introduziu um outro (e novo) dogmatismo. Ao curvar a vara para o outro lado e negar categoricamente o caráter burguês da democracia política moderna ele obrigou que os intelectuais marxistas se re-posicionassem sobre o problema. A síntese do debate, no geral, acabou sendo bastante positiva.
No seu artigo, ele criticou a falsa e mecânica identificação entre democracia política e dominação burguesa e afirmou: “Chamar as modernas democracias européias atuais de burguesas só é possível à custa de um enorme empobrecimento da análise e, por conseguinte, da perspectivas política. Seria mais correto dizer que são democracias sob hegemonia burguesa, aliás hegemonia em permanente disputa por parte dos trabalhadores.” A principal tarefa consistiria em buscar eliminar o domínio burguês sobre o Estado, a fim de permitir que esses institutos políticos democráticos possam alcançar pleno florescimento e, desse modo, servir integralmente à libertação da humanidade trabalhadora.
Seguindo a trilha aberta pelo então pecebista Carlos Nelson Coutinho, alguns anos depois, Francisco Weffort, um dos principais ideólogos do Partido dos Trabalhadores, publicou o livro Por que democracia? Nele, entre outras coisas, afirmou: “A democracia foi, em algum momento da história da Europa, um instrumento da aristocracia contra o absolutismo monárquico. Tornou-se depois instrumento da burguesia contra a aristocracia. E é, já há algum tempo, como democracia representativa e democracia direta, um instrumento do operariado e das massas populares contra a burguesia.” Em outra passagem escreveu: “Raciocinar sobre a democracia, como a conhecemos no mundo moderno, como se fosse apenas fruto de artimanhas das classes dominantes, é mais do que dar provas de ignorância da história política.” Quase uma década depois outro ideólogo petista, Marco Aurélio Garcia, afirmou a democracia política é um fim em si. Um valor estratégico e permanente. Se esta tese é social-democrata, paciência, sejamos social-democratas!
A crítica dos marxistas brasileiros
Vários marxistas brasileiros criticaram as teses expostas por Coutinho e Weffort. A primeira resposta foi dada por Adelmo Genro Filho no seu artigo A democracia como valor operário e popular, publicado também na revista Encontros da Civilização Brasileira. Porém, coube ao professor Décio Saes o mérito de realizar a crítica mais elaborada (e mais original) às formulações eurocomunistas que começavam a ganhar adeptos em nosso país.
No início de 1981, ele publicou na revista Teoria e Política o artigo A democracia burguesa e a luta proletária. Este foi, sem dúvida, um marco no debate sobre a relação entre a luta operária pelo socialismo e a democracia política moderna. Nele se procurou romper com a problemática predominante que consistia em supor que a democracia burguesa, como produto histórico concreto de práticas de classe, teria de corresponder necessariamente, e de modo integral, aos objetivos, intenções ou finalidades de uma só dentre as classes sociais antagônicas. Ou seja: ou a democracia corresponderia aos objetivos, intenções e finalidades do proletariado (primeira tese), ou ela corresponderia aos objetivos, intenções e finalidades da burguesia (segunda tese). A primeira tese era (e é) defendida pelos social-democratas e eurocomunistas (entre os quais se encontra Coutinho) e a segunda predominou amplamente no estalinismo e no trotskismo.
Utilizando-se de uma reflexão de Engels, expressa em Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã, chegou à conclusão de que na maioria dos casos (e não, necessariamente, em todos eles) o resultado concreto de um processo social (relação entre agentes) não corresponde às intenções nem de um, nem de outro agente. “Tal ocorre, em geral, com o processo de dominação política de classe: a sua forma objetiva não corresponde nem à intenção da classe exploradora, nem à intenção da classe explorada (…) A prática da classe explorada, de resistência à dominação de classe, põe obstáculos à concretização das intenções da classe exploradora (= maximização da exploração, até o limite da sobrevivência física da classe explorada), mas as concessões (materiais, no plano do discurso) com as quais a classe exploradora responde à prática de resistência, desencaminha a classe explorada, levando-a a agir por vias que não levam à concretização de sua intenção (a supressão da dominação de classe e da exploração do trabalho (…).”
Em um ponto Décio parece concordar com os autores da chamada primeira tese: a democracia política não estava no programa inicial da burguesia e não era uma de suas aspirações. Na sua luta contra a antiga classe dominante, escreveu Décio, a burguesia não prepõe a instauração de uma igualdade política formal – direitos políticos para todos –, e sim a instauração de uma nova desigualdade política formal, desta vez favorecendo o conjunto das classes proprietárias (e não mais apenas a nobreza feudal) e desfavorecendo o conjunto das classes trabalhadoras (…) Logo após a derrota política da classe dominante feudal, a burguesia já luta não só para maximizar a exploração do trabalho, como também para impedir que o proletariado se organize. Na França, ainda em plena luta contra a monarquia absoluta e a nobreza feudal (junho de
1791), a burguesia impõe às classes populares a Lei Le Chapelier (interdição à liberdade de organização) (…) Além disso, uma vez derrotadas politicamente as massas populares, a burguesia introduz (Constituição de 1795) o sistema de voto censitário (direito de voto segundo a renda) e tal sistema continuará, justamente em virtude do seu caráter discriminatório, a ser o sistema eleitoral preferido pela burguesia francesa do século XIX. “
Segundo o autor, a pressão crescente das massas populares pela igualdade econômica levou a burguesia a fazer concessão no plano político. “Tais instituições, afirmou ele, representaram uma concessão da burguesia às classes populares (….) Ela consiste em propor (…), não a concretização da igualdade material, e sim um substitutivo:
a igualdade política formal entre os indivíduos. Isso é apresentado como condição que torna passível de sucesso a luta das classes populares pela igualdade sócio-econômica.”
A chamada democracia moderna (burguesa) seria, assim, o resultado deformado de um processo de luta, não correspondendo às intenções, nem de um, nem de outro dos agentes. Isso fez com que a democracia pudesse abrir, contraditoriamente, duas possibilidades: ela poderia servir como um instrumento de reforço da dominação
ideológica burguesa, como levar ao desenvolvimento da consciência revolucionária do proletariado.
A Crítica Marxista e o debate atual
Nestes últimos anos a revista Crítica Marxista publicou diversos artigos de intelectuais que são contrários à tese da democracia como valor universal, como os
professores Márcio Naves, Caio Navarro de Toledo, João Quartim de Moraes e do próprio Décio Saes (veja bibliografia abaixo).
Em geral, esses intelectuais escaparam dos dois extremos no tratamento da questão da democracia política moderna. Um foi o da fetichização, expressada na tese da democracia como valor universal, e o outro foi o da desqualificação – da vinculação direta (sem mediação) entre democracia política e dominação burguesa. Extremos que se expressam na falsa disjuntiva: democracia política (formal) como espaço emancipatório por excelência ou como simples ardil concebido pela burguesia para manter a sua dominação de classe sobre o proletariado.
Criticando os arautos da democracia como valor universal, Caio Navarro de Toledo escreveu: “Ao se postular que a democracia moderna no capitalismo é o produto e a
conseqüência das lutas populares, passa-se à conclusão equivocada de que, nos tempos atuais, a democracia é fundamentalmente um poder exclusivo das classes trabalhadoras
(…) Subestima-se, assim, a realidade de que o funcionamento regular das instituições democráticas (eleições regulares, pluralismo partidário, liberdades políticas, etc.) têm igualmente contribuído para a legitimação da ordem burguesa (…) A realização da democracia representativa, na ordem capitalista, constitui e difunde a ideologia do Estado neutro e do Estado representante da totalidade da população.”
Mas, por outro lado, a democracia política não é sinônimo de dominação burguesa nem é uma conquista descartável ou supérflua para as classes trabalhadoras e conclui: “O valor da democracia política na ordem do capital reside nas possibilidades abertas para os trabalhadores lutarem pela construção de uma sociedade sem privilégios e sem discriminações. É nesse sentido, pois, que a institucionalidade democrática deve ser consolidada e permanentemente ampliada.”
Quartim de Moraes, por sua vez, escreveu: “É curioso constatar que (…) os dogmáticos de esquerda convergem com os de direita no empenho em ocultar as
diferenças entre liberalismo e democracia. Os de esquerda, ao afirmar o caráter irremediavelmente burguês da democracia, tornam irrelevantes, senão impossível,
distingui-la da ideologia liberal. Os de direita, principalmente os politólogos norte-americanos, para anexar à ideologia liberal os valores democráticos, amputam-nos do seu conteúdo historicamente originário e conceitualmente original (=poder do povo).”
Aqui ele se refere explicitamente a Schumpeter para o qual a democracia se confundiria com um simples método, um arranjo institucional para chegar a decisões
políticas, no qual os indivíduos adquirem o poder de decidir mediante uma luta competitiva pelos votos do eleitor. Assim, estaria excluída toda e qualquer relação entre
democracia e soberania popular tão cara aos velhos democratas como Rousseau, Robespierre, etc.
Continua Quartim: “A expressão democracia burguesa (…) em si mesma não é nem verdadeira nem falsa. Dá origem, entretanto, a múltiplos equívocos (…) A cópula predicativa oculta a tensão dialética entre as duas. ” Para ele seria o liberalismo a forma política mais adequada à dominação de classe dos capitalistas e, nesta medida, serve-lhe de ideologia espontânea. Se democracia não rima com burguesia, liberalismo sim.
Apesar dessa importante constatação, Quartim não descarta apressadamente a tradicional definição da democracia realmente existente (demorex) como democracia
burguesa. Escreve ele: “sobre a base das relações capitalistas de produção, a democracia será sempre a forma política da dominação de classe da burgu
esia”. Donde a
necessidade objetiva de uma ruptura abrindo a via para passagem da ordem do capital à ordem socialista.
Por fim, o autor rompe com a polarização anti-dialética – e anti-histórica – em torno do problema da possibilidade da transição ao socialismo pela via democrática (que não se confunde com via pacífica). O marxismo, escreveu ele, não recusa, em princípio, a idéia da transição do capitalismo ao socialismo pela via democrática. Sempre é bom lembrar que quem recusa essa via é a burguesia, como atestam as dezenas de golpes de Estado que derrubaram governos de esquerda. Novamente é a burguesia que se mostra incompatível com as realizações da democracia.
8/3/2006
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