Os poetas subversivos do 'Em mãos'

Selvino Heck é assessor especial da Secretaria Geral da Presidência da República.

“Parabéns, Selvino!!! Foi este livro que me fez ouvir pela primeira vez sobre um padre e que fazia política da boa. Abração. Géio”.

Foi assim. “No início dos anos 1970, um grupo de jovens uniu-se para formar uma cooperativa, o Grupo Vereda. Tinha por finalidade publicar livros de autores novos que estavam surgindo e, principalmente, posicionar-se diante da situação política dominante: o período militar. Eram escritores que acreditavam na palavra como manutenção da liberdade, que a poesia fosse comunhão entre os seres, e que, através dela, palavra, seria possível alcançar um mundo melhor para todos. Foi lançada a antologia Em mãos, no ano de 1976, pela Lume Editora” (nota do organizador do Em mãos III, José Eduardo Degrazia).

Mas ser escritor e poeta nos anos 70 do século passado tinha consequências. Os serviços de segurança acompanhavam os passos de quem usava a palavra a favor da liberdade. Senão vejamos.

“Sigla de origem: DCI SSP RS; Data: 15/04/1977; Sigilo C; Número do ACE: G0072746. Assunto: Livro de poesias denominado Em mãos. Texto: Estão sendo vendidos exemplares do livro de poesias denominado Em mãos, de vários autores, o qual traz conteúdo ideológico com tendência esquerdista. Antecedentes subversivos de elementos envolvidos na elaboração do citado livro, bem como pessoas ligadas a eles. Constam dados de qualificação”.

“CONFIDENCIAL: Estado do Rio Grande do Sul – Secretaria da Segurança Pública – Administração Superior – Departamento Central de Informações – Porto Alegre, 15 de abril de 1977. Exemplares do livro de poesias denominadoEm mãos, de autoria dos escritores Humberto Guaspary Sudbrack, Umberto Gabbi Zanatta, Dilan D’Ornellas Camargo, José Eduardo Degrazia, Selvino Heck, Cesar Pereira, juntamente com outros elementos que se uniram a este grupo, entre os quais Sérgio Conceição Faraco, Horácio Goulart, Paulo Kruel de Almeida, Suzana Kilpp, Aldir Garcia Schlee e Airton Aloísio Michels, estão sendo vendidos na LIVRARIA MISCELÂNEA, sita nos altos do Mercado Público. A apresentação é de Tarso Fernando Herz Genro, elemento pertencente à organização subversiva ALA VERMELHA do PCdoB. O seu lançamento oficial seria na sessão de autógrafos, na Praça da Alfândega. O livro em questão traz conteúdo ideológico, com tendência esquerdista, daí se pode presumir tendo em vista a apresentação de TARSO FERNANDO HERZ GENRO”.

“05/10/1977. Assunto: Clero, Ordem dos Frades Menores Franciscanos, Selvino Heck, Frei. Texto: Análise do BCFFSR, órgão de divulgação da Província franciscana com sede em Porto Alegre/RS. A poesia Oferenda, em estilo de oração e de caráter subversivo. O autor (eu, grifo meu) exprime em versos a sua opinião sobre o lavrador brasileiro, colocando-o na situação de escravo. Ao final da poesia apresenta o ponto de vista sobre a situação social do Brasil, afirmando: “Te apresento, Senhor, a  dor mais viva, o sangue correndo lentamente, o grito morto chorando escravo – o povo todo aprisionado, sem casa e sem esperança”.

As referências acima são transcrição literal dos informes da segurança pública gaúcha sobre o lançamento do livro de poesia Em mãos, enviadas ao Serviço Nacional de Informação (SNI) nos anos 70 do século passado, e hoje acessíveis no Arquivo Nacional.

No lançamento do Em mãos I, 1976, declamei o poema A manhã vai chegar, expressão do momento: ditadura, mas esperança de democracia no Brasil e na América Latina. Olhando para trás, tudo que aconteceu parece hoje impensável, impossível, quase fantasia. Escrever um livro de poesia e ser monitorado pelas forças de segurança! Há menos de 40 anos! Mas a manhã, com a luta de todas e todos, felizmente chegou.

Os poetas e escritores subversivos, entre os quais, por ironia ou espanto da história, o hoje governador Tarso Genro e o hoje secretário de Segurança do Rio Grande do Sul Airton Michels, lançaram em 2002 o Em Mãos II, pela WS Editora, mais uma vez apresentação de Tarso Genro. Agora estão lançando o Em mãos III, com os mesmos cinco participantes originais, Tarso Genro participando desta vez como poeta, e mais a presença do poeta convidado Paulo Roberto do Carmo, dia 3 de novembro, 16h, Feira do Livro de Porto Alegre, no Memorial do Rio Grande do Sul.

O Géio da mensagem inicial é Rogério Sottili, hoje secretário executivo da Secretaria Geral da Presidência da República, respondendo ao convite de lançamento do Em mãos III. Ele e um grupo de jovens estudantes de Nova Prata, interior do Rio Grande do Sul, faziam atividades culturais na cidade e ouviram falar de “um padre poeta”. E me convidaram para fazer um debate e lançar o Em mãos I. Foi quando nos conhecemos e construímos uma história comum de quase 40 anos, cimentada na poesia e na cultura. Ele, Géio, e os poetas subversivos de 1976 continuam lutando, com a palavra, por justiça, liberdade e democracia.

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