Uma ogiva nuclear ou 160 milhões de crianças na escola? Segundo Kailash Satyarthi, coordenador da Marcha Global Contra o Trabalho Infantil, com US$ 11 bilhões seria possível garantir a educação de todas as crianças do planeta, valor correspondente a apenas 2% dos gastos militares no mundo.
Jonas Valente Carta Maior
BRASÍLIA – Apesar de ser uma prática condenada pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), o trabalho infantil atinge 218 milhões de crianças no mundo. Na América Latina e Caribe, 5 em cada 100 desenvolvem algum tipo de trabalho. No Brasil, são mais de 2,2 milhões da população entre 5 e 14 anos, somando aproximadamente 6,8% do total de crianças. O fenômeno é secular e está diretamente vinculado à reprodução da pobreza nas nações e entre elas. Problema conhecido e cada vez mais evidenciado para o mundo, o trabalho infantil tem entre seus antídotos a efetivação de políticas com recursos adequados para colocar todas as crianças na escola e garantir seu tempo livre.
Esta foi a mensagem principal de Kailash Satyarthi, ativista indiano e
coordenador da Marcha Global Contra o Trabalho Infantil, apresentada na
abertura do seminário Pobreza, Educação e Desenvolvimento, que teve
início em Brasília, quarta-feira. O evento é uma iniciativa da ONG Missão
Criança em parceria com a ONG internacional OXFAM e visa discutir a
relação entre estes três complexos temas no Brasil e no mundo, com
destaque para sua interrelação em ações como programas de transferência
de renda associados à promoção da inserção infantil e juvenil na escola.
Na avaliação de Satyarthi, há avanços importantes no combate ao trabalho
infantil. Entre 2001 e 2004, foi registrada redução de 11% no número de
crianças trabalhando, sendo a redução mais significativa aquela
referente aos piores tipos de trabalho infantil. São classificadas neste
grupo a escravidão, a venda e tráfico de crianças, a servidão por dívida
e o trabalho forçado, a exploração sexual, o aliciamento de crianças
pelo tráfico de drogas e qualquer trabalho que possa ser prejudicial à
saúde ou ao desenvolvimento físico e moral das crianças. No entanto, ele
reafirmou que é preciso muito mais vontade política e empenho concreto
das nações para erradicar este tipo de prática, incompatível com uma
sociedade do conhecimento. Mas para isso é fundamental superar três
déficits: social, política e financeira.
Na dimensão social, o indiano salientou a importância de não entender o
fenômeno como conseqüência da pobreza, mas como um elemento
umbilicalmente ligado a ela numa relação de ovo e galinha. Ao mesmo
tempo em que é conseqüência, o trabalho infantil é um dos vértices da
reprodução da desigualdade social, pois sua lógica de utilização de
mão-de-obra barata desemprega jovens e adultos e rebaixa as condições de sua empregabilidade pelo fato destas faixas etárias se dispuserem a
trabalhar sobre as mesmas condições das crianças. Além de piorar a
remuneração tanto de crianças quanto de jovens e adultos, este modelo
diminui poder de organização do povo, outro fator de melhoria de
condições de vida.
A face política dos obstáculos, continua, está na baixa efetividade e
adesão a acordos internacionais que proíbem e disciplinam o trabalho
infantil. Ele citou como exemplo a Convenção 182 da OIT, sobre as
chamadas piores formas de trabalho infantil. Apesar de já ter sido
ratificada por 150 países, a convenção não tem se transformado no âmbito
nacional em um conjunto de normas articuladas e efetivas para combater o
trabalho infantil, analisa Kailash Satyarthi. O problema está no fato de
muitos países ratificarem o tratado mas não efetuarem a sua
regulamentação através da aprovação de leis específicas de proibição ao
trabalho infantil. Precisamos destas leis e dos seus respectivos
mecanismos de implementação, além de maior coordenação entre as diversas instâncias que tratam de políticas referentes às crianças, defendeu, fazendo referência ao fato de que em vários países há fragmentação das iniciativas relativas aos direitos das crianças, o que acaba dispersando esforços e recursos.
Para Kailash, a receita para a resolução destes dois problemas está em
garantir uma educação de qualidade associada ao combate à pobreza. Com possibilidade de freqüentar a escola e sem necessidade de ajudar na
renda familiar mensal, a demanda pelo trabalho infantil passaria a cair.
No entanto, este raciocínio esbarra no pior dos déficits: o financeiro.
De acordo com dados apresentados na conferência pelo indiano, com US$ 11 bilhões seria possível garantir a educação de todas as crianças do
mundo, valor correspondente a apenas 2% dos gastos militares no mundo.
Uma ogiva nuclear, por exemplo, custa o equivalente ao suficiente para
colocar 160 milhões de crianças na escola. Continuando as comparações, o
indiano lembrou que os US$ 11 bilhões representam ¼ do que é usado pelos norte-americanos na área de cosméticos. Não é falta de dinheiro, mas de compaixão e de pensar no futuro. É questão de prioridade. Muitos países alocam só 2% do PIB em educação enquanto gastam muito mais em outras áreas, afirmou.
Iniciativas
O ativista destacou o esforço de diversos países na luta contra o
trabalho infantil. No Quênia, as taxas referentes a entrada e permanência
nas escolas foram abolidas, o que resultou em retorno de cinco milhões
de crianças às aulas. Em diversos países, outro episódio representativo
foi a reação ao trabalho infantil nas plantações de cacau e na indústria
de produção de chocolate, que diminuiu a prática de trabalho infantil
neste setor. Na Índia, foi criado o projeto Cidades amigas da criança,
que consistia na adesão a quatro compromissos por parte de governos de
municípios e regiões: a erradicação de toda a forma de trabalho
infantil; o cadastro de todas as crianças na escola; a criação de um
parlamento paralelo com representantes da sociedade civil envolvidos
na luta pelos direitos desta população; e a incorporação por parte dos
legislativos deste parlamento paralelo na definição, acompanhamento e
avaliação de políticas voltadas para a infância.
Kailash Satyarthi citou como exemplo também o Brasil, que vem obtendo
bons resultados por conta de seu Programa de Erradicação do Trabalho
Infantil (Peti). O país conseguiu reduzir, entre 1992 e 2004, os índices
de ocupação das crianças de cinco a nove anos em 61%. Entre a faixa
etária de 10 a 17 a queda foi de 36%. O Peti se caracteriza por um
tripé: uma bolsa mensal para as famílias de crianças e adolescentes que
trabalham; a promoção social dessas famílias por meio de ações
sócio-educativas e de ampliação e geração de renda; e a participação de
meninos e meninas na jornada escolar ampliada, que inclui atividades de
lazer, esportivas, culturais e de reforço escolar.
Para Carlos Henrique Araújo, secretário-executivo da ONG Missão Criança,
promotora do evento, a garantia dos direitos das crianças, entre eles à
não estar submetida a trabalho nas suas piores formas, passa por uma
reforma da educação básica no País. Este conjunto de mudanças, continua,
atacaria o sério problema da qualidade existente hoje no ensino
fundamental e médio. Segundo Araújo, foi fundamental a quase
universalização da 1ª à 8ª série (ensino fundamental), mas o gargalo
do 2º grau (ensino médio) ainda permanece como desafio fundamental para o País . Dados da ONG mostram que apenas 56% dos estudantes terminam a 8ª série e menos de 33% chegam ao ensino médio. Além da evasão, outro problema apontado é a falta de qualidade. Ainda de acordo com as informações da organização, 55% das crianças na 4ª série não sabem ler, sendo 71% quando considerada apenas a região nordeste.
Temos um dos maiores programas de distribuição de renda, o Bolsa
Família. Precisa ter um tom mais de escola, pois é a escola que vai dar
o futuro. Qualquer semelhança com a defesa do candidato Cristovam
Buarque do retorno ao programa de transferência Bolsa-Escola não é mera
coincidência. A ONG realizadora do evento, Missão Criança, foi fundada
pelo candidato do PDT. O seu secretário-executivo, Carlos Henrique
Araújo, foi diretor de Avaliação da Educação Básica do Instituto
Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep) durante a gestão de
Buarque (2003-2004).