Política e verdade

   A jovem democracia brasileira está em construção. Se nem as democracias mais consolidadas ou as democracias populares escaparam incólumes, como tantos exemplos conhecidos, por que a democracia brasileira, cuja história registra mais golpes e regimes fechados que ventos democráticos.

 Quando comecei a fazer política partidária pela primeira vez na vida, no início dos anos 80, tudo tinha um certo ar e dose de romantismo. Por um lado, bastava ser contra a ditadura, exigir Diretas-Já. Por outro, tudo estava por construir ou reconstruir: os movimentos sociais, as lutas por direitos, os partidos políticos. Saía-se de uma espécie de terra arrasada pela ditadura nos anos sessenta e início dos anos setenta para uma nova era cheia de esperança e de futuro.
 Na Lomba do Pinheiro, periferia de Porto Alegre, nas vilas populares onde predominantemente moravam trabalhadores da construção civil e funcionários públicos de baixa renda, fazia-se de tudo, desde os grupos bíblicos de família, que se reuniam regularmente nas casas das pessoas, à construção das associações de moradores para lutar por água, transporte público, posto de saúde, saneamento básico, até a construção do primeiro núcleo do Partido dos Trabalhadores. Eram as mesmas pessoas, que descobriam fazendo, que aprendiam conversando, que corriam voluntariamente, sem ganhar um tostão, de cima pra baixo a semana inteira, sábado, domingo, noite e feriado, querendo o bem do povo, querendo mudar o Rio Grande, o Brasil e o mundo.
 Havia um grau de generosidade e de mística envolvida na ação que transcendia as dificuldades, os limites da ditadura ainda existente, o descompromisso dos governos. Havia sonhos.
 Parte dos sonhos foram se materializando ao longo do tempo. Conquistavam-se governos populares, elegiam-se parlamentares de raiz popular, as condições de vida do povo da Lomba do Pinheiro começaram a melhorar com o asfalto nas ruas, a escola nova, os postos de saúde, o transporte público mais digno, o Orçamento Participativo que reunia milhares de pessoas.
 As organizações cresciam: o movimento sindical, o partido, as pastorais se espalhavam. E daí me lembro, talvez mal comparando, da comunidade dos primeiros cristãos, onde tudo era repartido e onde se vivia nas catacumbas. Um dia o número de fiéis cresceu, era preciso sair das catacumbas e viver o cristianismo à luz do dia, relacionar-se com o poder. Ou o poder se aproximava dos cristãos que antes metiam medo e se escondiam. E a Igreja católica tornou-se o que é, nas suas virtudes e nos seus defeitos, tão bem expressos em e por São Francisco.
 Rememoro tudo isso à luz dos acontecimentos recentes e atuais da jovem democracia brasileira, que está enfrentando apenas a quinta eleição após a redemocratização, mas está sob turbulências e questionamentos vários.
 O poder em construção tem um rosto idílico e primaveril. Quando conquistado ou quando dele, inevitavelmente, é preciso se aproximar, mostra sua face de disputa, de desvios, mesmo de corrupção e crueldade. Por isso, hoje não afasto mais a necessidade de um grau de realismo acoplado a um grau de ceticismo à luz da história. Os desmandos do poder, seja em que lugar for, igrejas, família, governos, instituições, fazem parte das grandezas, virtudes e das limitações humanas. Embora indignados, não há como não conviver com o lado realizador e positivo do poder como com seu lado destruidor.
 Afastar-se da busca do poder não é a saída. Construir, sim, antídotos, estar sempre aberto à crítica e fazer permanentemente a autocrítica, criar mecanismos de controle, afastar os que se desviam do bom caminho, buscar sempre a verdade torna o poder e a política, com todos seus problemas, palatável e possível de ser feita.

 A jovem democracia brasileira está em construção. Se nem as democracias mais consolidadas ou as democracias populares escaparam incólumes, como tantos exemplos conhecidos, por que a democracia brasileira, cuja história registra mais golpes e regimes fechados que ventos democráticos, haveria de ser diferente? Há que apostar no aprendizado do povo e na sua permanente capacidade de renovação, de enxergar e propor novos caminhos, de apostar na esperança sempre de novo, no sonho, no futuro. O jeito é este, não há outro.

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