Espetáculo e canibalização tornam incomunicáveis os mestres das tradições populares

   A relação da mídia com as culturas populares esteve presente em quase todos os espaços do I Encontro Sul-Americano das Culturas Populares e o II Seminário de Políticas Públicas para as Culturas Populares, realizado em Brasília, entre 14 e 17 de setembro

Carlos Gustavo Yoda – Carta Maior

“Já não é necessário que os fins justifiquem os meios. Agora os meios, os meios massivos de comunicação, justificam os fins de um sistema de poder que impõe seus valores em escala planetária. O Ministério da Educação do governo mundial está em poucas mãos. Nunca tantos tinham sido incomunicados por tão poucos” (Eduardo Galeano – "De Pernas Pro Ar").

BRASÍLIA – A veiculação de apenas o que é espetacular e a canibalização dos conhecimentos populares são os principais impeditivos para que as cultura populares sejam difundidas pelos meios de comunicação de massa. Assim, não nos reconhecemos em meios como a televisão, pois eles não contam nossa história. Foi o que concluíram os especialistas presentes ao I Encontro Sul-Americano das Culturas Populares e ao II Seminário de Políticas Públicas para as Culturas Populares, realizado em Brasília, entre 14 e 17 de setembro, nos quais o tema da difusão das culturas populares na mídia esteve presente em quase todos os espaços.

Estereótipos midiáticos e canibalização
A questão vem para primeiro plano, mas ainda são poucas as iniciativas para democratizar os espaços. A crítica é do professor de antropologia da Universidade de Brasília (UnB) José Jorge de Carvalho. De acordo com ele, os profissionais da mídia não sabem lidar com as expressões populares e acabam por modificar o real significado dessas culturas.

“As pessoas chegam e filmam de qualquer maneira. Um editor, que nunca esteve em campo, é que vai escolher os aspectos mais espetaculares. De repente, uma parte, que é a mais significativa do ritual, não aparece porque não é vista como espetacular”, afirmou Carvalho.

Além disso, o professor acrescenta que a mídia acaba criando estereótipos devido à ignorância em relação à diversidade e ao emprego generalizado de padrões estabelecidos da produção para o espectador-consumidor de informação. Além da espetacularização da sociedade e dos meios, Carvalho considera a canibalização, ou seja, a tradição contada e praticada por quem não a conhece, um dos principais problemas atuais. Segundo o professor, a elite é a principal responsável por esse processo.

“Há uma cultura imensa, variada e rica, mas de pessoas e comunidades pobres. É muito fácil quando uma pessoa de classe média, com poucos recursos, aprende uma tradição cultural porque o mestre vai ensinar. Depois, essa pessoa pode constituir o seu próprio grupo e, às vezes, apresenta-se no lugar do grupo tradicional que a ensinou”, explicou.

Estranhamento e reconhecimento
Segundo o diretor nacional de música do Sesc, Wagner Campos, desde o golpe de 64, o projeto do mercado e da indústria cultural no Brasil foi a centralização da produção no eixo Rio–São Paulo. O grande desafio de nossos tempos é, portanto, como fazer com que a produção fora do eixo possa manifestar-se por meio das novas tecnologias da informação e da comunicação.

“Existe um enorme vácuo entre aquilo a que assistimos todos os dias na televisão e as manifestações artísticas populares. O Brasil não se reconhece através dos meios de comunicação. É preciso moldar as coisas de uma forma melhor, através da perspectiva das culturas populares”, acredita o diretor do Sesc.

Celina Cabarcas, diretora da TV Vive, da Venezuela, afirma que, no cotidiano, a televisão pública em seu país procura reafirmar a história do povo para conseguir encontrar a identidade comum. “Uma nova televisão é extremamente necessária. Mas ela deve partir de nossa gente. Feita pelo povo e não por jornalistas e técnicos. Isso é muito difícil, mas apenas assim poderemos mostrar as histórias como elas são. Contadas pelos próprios protagonistas”, pontua.

Partindo desse princípio, a TV Brasil Canal Integración, da Radiobrás, incentivou a participação de agentes culturais de todos os estados do Brasil na produção do Mosaico Cultural, uma mostra de vídeo pautada, produzida e editada pelos populares, contando apenas com a estrutura e apoio da Radiobrás (confira o resultado aqui).

O coordenador da TV Brasil, Adriano de Angelis, afirma que até mesmo devido à pouca estrutura do Canal, a intenção é incentivar a participação popular e de outras entidades parceiras. Assim aconteceu com o Mosaico Cultural, produzido com agentes dos pontos de cultura, do Ministério da Cultura.

Contar as nossas histórias
João Alegria, da TV Futura (Rede Globo), diz que fazer TV é muito simples. “Apenas contamos histórias. E isso talvez seja a coisa mais importante para a sobrevivência da humanidade: contar histórias”. Apenas dessa forma a sociedade poderia apresentar sua identidade.

“A comunicação deve ser compartilhada. Não apenas na recepção de conteúdo. Não é apenas o direito à informação. Estamos tratando de direito de falar. E, em uma sociedade mediada, todos devem ter espaço nos meios para poder contar suas histórias”, acrescenta Adriano de Angelis.

“Se partirmos do básico que diz que qualquer um pode contar sua história, então por que a TV não conta nossas histórias? Precisamos pensar em outra maneira de fazer televisão”, afirma João Alegria, imaginando outras maneiras de se fazer audiovisual longe dos padrões estabelecidos.

A participação direta do público poderia ser um bom exemplo, segundo Alegria. Isso diz de imediato que as pessoas existem e que têm algo para dizer. Todos os pequenos espaços abertos são preenchidos, como as votações do Big Brother Brasil e derivados. “Precisamos pensar nessa interatividade participativa para além dessas votações. A TV digital pode apresentar novos caminhos para isso”, destaca.

A difusão das culturas apenas será legítima quando o conteúdo dos meios for produzida pelo coletivo que faz parte daquela tradição, acredita Mari Corrêa, que realiza um projeto de capacitação de índios para o setor audiovisual. A intenção é formar uma primeira geração de índios produtores em todo o país, para que pela primeira vez eles possa contar suas histórias.

Debates Carta Maior
Dando continuidade à série de debates promovida pela Carta Maior, acontece nesta segunda-feira, dia 25, às 19h, no Hotel Maksoud Plaza, em São Paulo, o debate "Mídia: as veias fechadas da América Latina". O evento tem como objetivo principal discutir a cobertura política feita pelos principais meios de comunicação do continente, centrada, sobretudo, nas questões da atualidade.

Estão confirmadas as presenças de Luis Hernádez Navarro, do jornal La Jornada, do México; Pablo Stefanoni, do Le Monde Diplomatique, da Bolívia; Hugo Cores, articulista do jornal La República, do Uruguai; Ernesto Tiffenberg, editor de internacional do Página 12, da Argentina; e o professor Venício A. de Lima, da Universidade de Brasília.

Na mesma ocasião, será lançado em São Paulo o livro Mídia: crise política e poder no Brasil, de Venício A. de Lima, publicado pela Editora Fundação Perseu Abramo. A publicação aborda a atuação da mídia brasileira na crise política vivida a partir de 2005 e faz uma análise da estrutura do sistema brasileiro de comunicação, caracterizado pela concentração e pela internacionalização.

O evento será transmitido ao vivo pela TV Carta Maior.

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