A ficção da novela Páginas da Vida, da Rede Globo, e a realidade parecem reciprocamente sombrear-se: na trama e na vida real, uma criança com síndrome de Down tem sua matrícula negada em escola particular.
José Fernando da Silva e Alexandre Camanho de Assis
A ficção da novela Páginas da Vida, da Rede Globo, e a realidade parecem reciprocamente sombrear-se: na trama e na vida real, uma criança com síndrome de Down tem sua matrícula negada em escola particular. É certo que na novela, o autor tem a liberdade de criar e desenvolver a estória sem necessária observância da lei, visto ser imaginária; porém, no duro palco onde tem lugar o verdadeiro drama humano, a atitude sempre deveria ser outra. Apesar disso, em recente decisão (15/09/2006), o juiz da 23ª Vara Civil Criminal reconheceu que a Nova Escola estabelecimento de ensino privado em São Paulo tem direito de negar a matricula a uma criança, atualmente com sete anos de idade.
Isto ocorreu e o juiz fez questão de registrar na sentença mesmo tendo a escola alegado valorizar a inclusão e integração de pessoas com deficiência… Este triste fato não mereceu, lamentavelmente, a devida atenção e crítica dos meios de comunicação. Na grande mídia, deu-se pouco destaque, sendo a Folha de São Paulo (17 e 20/10/2006) e o Fantástico (22/10/06), algumas exceções. Talvez o circense período eleitoral tenha contribuído para a baixa repercussão de um caso grave de afronta ao direito fundamental à educação, à dignidade, à igualdade.
A Escola pretextou não estar preparada para lidar com a criança com síndrome de Down, fato candidamente aceito pelo juiz. Duas indagações: e se a criança tivesse deficiência visual ou auditiva, a escola estaria preparada? É possível haver preparação sem o atendimento e o contato com as diferenças inerentes à pessoa humana? As respostas possíveis são muitas e não serão aqui esgotadas. Todavia, é certo que pais, mães, educadores/as, conselheiros/as de direitos e tutelares, promotores/as e juizes/as só se preparam durante os processos de convivência educativo, administrativo e jurídico. Em outras palavras, é crível que a falta de convivência direta e indireta não resolve o problema da ausência de preparação alegado pela escola. Autêntico ciclo vicioso: se não há atendimento, não há preparação. E, não tendo havido preparação, não pode haver atendimento!
A sentença proclama ser dever do Estado e não da iniciativa privada a obrigação pelo o atendimento especializado às pessoas com deficiência, compreensão fundada no artigo 208 – III da Constituição Federal (CF). E reconhece que os incisos I e II do artigo 209 da Constituição Federal fixam duas condições para ensino pela iniciativa privada: cumprimento das normas gerais da educação nacional e a autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público. Prossegue a sentença: isso não significa que as escolas da iniciativa privada estejam obrigadas a receber portadores de deficiência. Para justificar-se, o juiz apresenta os três fundamentos: primeiro, porque o inciso III do artigo 208 alude a dever do Estado; segundo, porque diz preferencialmente, não obrigatoriamente; terceiro, a iniciativa privada não é obrigada a suprir eventuais carências do Estado.
Quando o mérito da análise toma norma infraconstitucional por referência, especificamente a LDB (Lei de Diretrizes e de Bases da Educação), o juiz evoca, para chancelar sua percepção do problema, os artigos 17 e 18, relativos aos sistemas de ensino: na sua ótica, compõem-se, basicamente, de instituições de ensino mantidas pelo Poder Público, instituições de ensino criadas e mantidas pela iniciativa privada e órgãos de educação.
Na seqüência, transcreve-se integralmente o artigo 59 da LDB, para justificar a interpretação do inciso III do artigo 4º daquele diploma legal: este inciso tem praticamente a mesma redação do 208/III da CF, já mencionado. O juiz reforça sua convicção quando diz que é dever do Estado, não da iniciativa privada, a ser prestado preferencialmente na rede regular de ensino, o atendimento escolar-educacional a crianças e adolescentes com necessidades especiais. Vários outros artigos da LDB são citados, sempre em auxílio da argumentação exposta na sentença.
Exposto, brevemente, o entendimento judicial, cabe desenvolver qual a nossa visão e interpretação da legislação nacional e internacional ambas, aliás, contrárias ao juiz da 23ª Vara Civil.
O artigo 2º da Convenção sobre os Direitos da Criança (1989), ratificada pelo Brasil, é taxativo quanto aos direitos das crianças e adolescentes, não se admitindo que impedimentos físicos, nascimento ou qualquer outra condição da criança, inclusive seus pais e mães sejam utilizados para negação de direito. O artigo 23 vai além: estabelece que os Estados-partes reconhecem que criança portadora de deficiências físicas ou mentais deverá desfrutar de uma vida plena e decente em condições que garantam sua dignidade, favoreçam sua autonomia e facilitem sua participação ativa na comunidade.
Parece óbvio, mas, é bom ressaltar que a comunidade escolar, e não somente ela, precisa se adequar às necessidades das crianças e adolescentes e as necessidades destas são sempre especiais, pois pessoas com até 18 anos de idade gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade, conforme consta do artigo 3º do Estatuto da Criança e do Adolescente. Portanto, toda criança e adolescente necessita de cuidados especiais – algumas, ainda mais.
A Constituição e as leis dela derivadas (Estatuto da Criança e do Adolescente e a Lei de Diretrizes e de Bases da Educação – LDB) são garantidoras de direitos à infância e à adolescência, não permitindo, inclusive, qualquer modalidade de discriminação. Os artigos 205, 206, 208 e 209 da Constituição são exatos no proclamar a garantia do direito de uma criança com deficiência no caso, com síndrome de Down à matrícula e freqüência à escola, mesmo em estabelecimento de ensino privado.
Escola privada, no marco normativo brasileiro, é uma concessão pública; donde, deve respeitar e cumprir, integralmente, a legislação nacional. A base primeira para a afirmação é a Constituição, ao enunciar que a educação é um direito de todos e dever do Estado e da família, a ser promovido e incentivado com a colaboração da sociedade. Seu artigo 209 afirma que o ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as seguintes condições: i) cumprimento das normas gerais da educação nacional; e a II) autorização e avaliação de qualidade pelo poder público. Já o artigo 208 assegura atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular.
Logo, a própria Constituição admite à iniciativa privada o atendimento educacional, que deve, logicamente, obedecer às normas da legislação. Isto implica reconhecer que a escola privada é parte integrante do sistema regular de ensino do contrário, não estaria sob as mesmas exigências regulatórias. O atendimento em rede regular de ensino não é, como imagina a tal sentença, sinônimo excusivo de rede governamental: todas as escolas privadas ou públicas estão obrigadas ao cumprimento da determinação constitucional e da LDB.
A legislação é extreme de dúvidas no definir os sistemas de ensino e franquear seu exercício pela iniciativa privada, sendo imprescindível o re
speito às mesmas normas para as governamentais, à luz dos artigos 209 da Constituição e 7º da LDB. Evidente, pela dicção de tais normas, que todo estabelecimento privado deve observar o estabelecido em Lei, e por maioria de razão quando o primeiro princípio normativo é justamente a igualdade de condições para o acesso e permanência na escola (artigos 205-I da Constituição e 3º-I da LDB).
Finalmente, o marco legal nacional e internacional foi elaborado para garantir e prestigiar os direitos fundamentais. Portanto, os operadores do direito devem pautar suas ações para a promoção, a proteção e a defesa tríade indispensável e inseparável que conformam a visão contemporânea de um Estado de Direito.
O marco regulatório já tem mais de 16 anos – tempo suficiente para que processo de preparação tenha-se realizado, ou ao menos iniciado. É hora de os poderes públicos devotarem-se prioritariamente a esta monumental tarefa, porque a dignidade humana e o respeito às diferenças (cor, etnia, gênero, deficiência, orientação sexual) só se efetivam mediante a convivência. Do contrário, perpetua-se a cada dia a segregação.
José Fernando da Silva é presidente do Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente) e integrante da coordenação do Centro de Cultura Luiz Freire. Alexandre Camanho de Assis é procurador regional da República.
Retirado do site da Agência Carta Maior, www.agenciacartamaior.com.br