Elogio da conscientização

Frei Betto

Conscientização deriva de   consciência, ter ciência ou conhecimento de algo. O termo  introduziu-se na  linguagem dos setores progressistas da América Latina  através das obras do  professor Paulo Freire  (1921-1997), educador brasileiro que desenvolveu a  pedagogia do  oprimido – método de alfabetização que favorece o  aprendizado da leitura e da  escrita através da contextualização das  "palavras geradoras".  

 Conscientização deriva de   consciência, ter ciência ou conhecimento de algo. O termo  introduziu-se na  linguagem dos setores progressistas da América Latina  através das obras do  professor Paulo Freire  (1921-1997), educador brasileiro que desenvolveu a  pedagogia do  oprimido – método de alfabetização que favorece o  aprendizado da leitura e da  escrita através da contextualização das  "palavras geradoras". Assim, pai está  na raiz de país, pátria, abrindo  à consciência do alfabetizando a percepção da  conjuntura sociopolítica  e econômica em que se situa.

Uma obra imprescindível, radiografia completa da  vida  e da pedagogia de Paulo, chega agora às livrarias: "Paulo Freire  – uma  história de vida" (São Paulo, Villa das Letras, 2006), assinada  por Ana Maria  Araújo Freire, educadora e viúva do renomado professor  pernambucano. Com farta  documentação, o livro esmiuça a trajetória de  vida do biografado, a evolução e  aplicação de seu método, os anos de  exílio, bem como os efeitos de seu  trabalho em vários países e as  homenagens merecidas.   

 Impelido pelo método  Paulo Freire,  na década de 1970 intensificou-se, na América Latina, o  "trabalho de  base" com setores populares, assessorados por equipes de educação   popular empenhadas em "conscientizar" camponeses, operários e pessoas  de baixo  poder aquisitivo. O verbo implicava tornar o educando  "consciente"  politicamente, ou seja, crítico ao sistema capitalista,  às ditaduras, à  opressão social e, ao mesmo tempo, adepto do projeto  de construção de uma  sociedade socialista.

Aos poucos, percebeu-se que não basta  "conscientizar",  dotar o militante de noções políticas de matiz  crítico. A cabeça pensa onde os  pés pisam. Ainda que se adquira  "consciência" dos problemas sociais e desafios  políticos, o risco de  idealismo é superado na medida em que o militante mantém  vínculos  orgânicos com os movimentos sociais. Sem prática social não há teoria   que transforme a realidade, ensinou Paulo  Freire.

Nas últimas décadas, o "trabalho de  base" ampliou o  significado de conscientização. O conhecimento não  deriva apenas da razão ou  dos conceitos que trazemos na cabeça.  Resulta também da fatores não-racionais  ou transracionais, como a  emoção, a intuição, o senso estético etc. Na Bíblia,  conhecer é  experimentar. Quando se diz que "Sara conheceu Abraão", significa  mais  do que ser apresentado a uma outra pessoa. É fazer a experiência daquela   pessoa, tocá-la física e subjetivamente,  amá-la.

Com a introdução, no trabalho político,  das relações  de gênero e da preservação do meio ambiente,  conscientizar ganhou um  significado mais amplo, articulando  consciência e subjetividade, atuação  efetiva e relações afetivas,  prática social e solidariedade individual.  Descarta-se, assim, a  figura do militante maniqueísta, que advoga a  transformação da  sociedade sem se empenhar na mudança de si mesmo. Agora,   conscientizado é o militante que conjuga, em sua atividade social e  política,  princípios éticos e compromisso com a causa libertadora dos   pobres.

A cabeça do oprimido, reza um  princípio  marxista resgatado por Paulo Freire, tende a ser "hotel" de  opressor.  Ela hospeda idéias e atitudes inoculadas em nós através dos meios de   comunicação, da cultura vigente, dos modismos. Pois o modo de pensar e  agir de  uma sociedade tende a refletir o modo de pensar e agir da  classe que domina  essa sociedade.

Conscientizar é propiciar aos oprimidos e aos   militantes políticos um distanciamento crítico dessa ideologia  dominante, de  modo que assumam práticas inovadoras e renovadoras,  rejeitando, na medida do  possível, influências que possam induzi-los a  – em nome de uma nova sociedade  – adotar práticas típicas dos  opressores, como é o caso do guerrilheiro que  tortura o soldado  inimigo para obter informações. Uma das causas da queda do  socialismo  no Leste europeu foi o descrédito de dirigentes políticos que   reproduziam em seu comportamento o que era próprio de tiranos e  caudilhos que  haviam derrubado e tanto  criticavam.

Na América Latina, o avanço dos  movimentos sociais e  da mobilização por mudanças estruturantes  depende, hoje, da intensificação do  trabalho de base. Este muitas  vezes vê-se ameaçado pela síndrome do  "eleitoreirismo" que contamina  partidos de esquerda, mais interessados em se  manter no poder do que  em promover as transformações sociais, políticas e  econômicas  acentuadas em seus programas e reivindicadas por sua base social de   apoio.

Dois critérios devem nortear, agora,  essa  conscientização: o vínculo pessoal e orgânico com as diferentes  formas em que  os pobres se mantêm organizados, e o aperfeiçoamento da  democracia pelo  compromisso irredutível com a promoção da vida em toda  a sua amplitude, desde  a defesa do meio ambiente à luta por reformas  estruturantes – como a agrária  -, que reduzam a desigualdade social e  assegurem a todos uma existência digna  e feliz. 

Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Paulo   Freire e Ricardo Kotscho, de "Essa escola chamada vida" (Ática), entre  outros  livros.

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