Povo, bucha de canhão

Perguntava eu: “Quando morre uma criança de fome, algum político, presidente, governador, prefeito é julgado e condenado por não garantir comida a quem tem fome? Os direitos dos animais são respeitados e assegurados pela justiça, mas e os direitos das crianças, dos jovens, dos idosos, dos trabalhadores? Os pobres não têm emprego, não têm comida pra dar pros seus filhos e nada acontece pra ninguém.”

Selvino Heck

 Ano passado fui convidado pelo Nilson e pela Rosa para o Encontrão das CEBs de Taiobeiras, norte de Minas Gerais, região das boas cachaças, perto de Salinas e de Montes Claros, que reúne milhares de pessoas vindas das comunidades da cidade e principalmente do interior do município. Reencontrei o Nilson no Encontro estadual da Rede TALHER de Educação Cidadã de Minas e ele me contou de como as pessoas participantes do Encontrão continuam lembrando de partes do que falei num palanque em cima de um caminhão.
 Contei que, em 2005, em Pelotas, Rio Grande do Sul, 4 jovens fizeram uma pirraça com uma cadela prenhe. Amarrara-na num carro e a arrastaram pelas ruas. Foram denunciados pela população indignada, julgados, dois presos, os outros condenados a trabalhos comunitários.
 Perguntava eu: “Quando morre uma criança de fome, algum político, presidente, governador, prefeito é julgado e condenado por não garantir comida a quem tem fome? Os direitos dos animais são respeitados e assegurados pela justiça, mas e os direitos das crianças, dos jovens, dos idosos, dos trabalhadores? Os pobres não têm emprego, não têm comida pra dar pros seus filhos e nada acontece pra ninguém.”
 Esta é uma realidade ainda existente no Brasil de hoje, embora as ações positivas do governo Lula na área social e embora ano passado tenha sido aprovada a LOSAN – Lei Orgânica de Segurança Alimentar -, por proposição do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (CONSEA) e do governo federal, e que antecede a criação do Sistema de Segurança Alimentar (SISAN), aliás agora em debate na preparação da IIIª Conferência de Segurança Alimentar, a realizar-se de 3 a 6 de julho em Fortaleza, Ceará, com a presença de mais de 2 mil delegados. A LOSAN estabelece que “é dever do poder público promover a realização do direito humano à alimentação adequada, bem como garantir os mecanismos para sua exigibilidade”.
 Os pobres, os pretos, os índios, os trabalhadores sempre serviram de bucha de canhão para as elites insensíveis de um país escravocrata, em que “os ricaços e ilustrados, em grande maioria e em todas as épocas da história brasileira, inclusive a atual, nunca creram na originalidade do Brasil. A forma característica do descomprometimento dos endinheirados, letrados e mandões com o Brasil hoje é um cosmopolitismo frívolo, comodista, acovardado, orgulhoso de sua desilusão e, sobretudo, ignorante”. No entanto, “no Brasil, quem inveteradamente se identificou com a nação foi o povo pobre, trabalhador e mestiço”, que sempre teve “confiança na originalidade coletiva e na busca de caminho novo” (Mangabeira Unger, FSP, 17.04.07).
 Tudo no Brasil, direitos, avanços populares, reconhecimento legal, é extraído a fórceps, depois de muita luta e sofrimento do povo organizado.
 Por isso, é de registrar, e não é pouco, o fato de se ver, depois de muita resistência e mobilização, o reconhecimento das terras dos povos indígenas, como Raposa Serra do Sol (ainda que s fazendeiros que a invadiram não se renderam e buscaram o Judiciário pra tentar reverter a homologação garantida pelo governo federal), o fato de os quilombolas começarem a ter a garantia legal das terras onde moram há séculos, e o esforço de assegurar acesso a crédito e políticas públicas para milhares de grupos e organizações de base da economia solidária espalhados pelo Brasil, bem como para a agricultura familiar. É o povo trabalhador sendo sujeito ou criando condições para ser sujeito da história, o que nem sempre tem sido fácil, mesmo no governo Lula.
 É o primeiro passo para se poder pensar e participar ativamente da construção de um projeto de nação que inclua socialmente. Os bancos, os grandes conglomerados econômicos continuam amealhando lucros astronômicos. Mas já não estão sozinhos no pedaço. É verdade que os ventos neoliberais puseram um freio a um processo de organização popular que avançava celeremente e ocupava espaços na sociedade, nos espaços públicos, nos parlamentos, no Executivo, disputando hegemonia, consciências e futuro.
 Os recuos dos anos 90 e início dos anos 2000 não pararam a história nem lhe deram fim, como pregava alguém. O povo consciente não mais se sujeita a ser massa de manobra de quem quer que seja, a ser eterna bucha de canhão do poder e dos modelos econômicos concentradores de renda e excludentes. 2015, data referência para avaliar até onde a humanidade chegou com os Objetivos do Milênio, e 2022, bicentenário da Independência, são datas importantes para avançar e sinalizar o futuro, não apenas na luta e resistência, mas também na construção de alternativas a um modelo econômico-social-cultural no qual a competição, o acúmulo de renda, riqueza, poder e o individualismo são o objetivo principal, e dizer sim à justiça, à solidariedade, ao fazer coletivo, à partilha dos bens produzidos por todos para todos.
O poder popular e a soberania são o momento histórico em que o povo deixa de ser bucha de canhão, e passa a ser respeitado enquanto ser humano e cidadão do planeta, assim como o animal é respeitado em sua animalidade. Como disse Paulo Freire, o mundo não é, está sendo.

Selvino Heck
Assessor Especial do Presidente

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