Brasil – 10 anos: Paulo Freire vive!

A senhora de uma pequena comunidade do semi-árido cearense que participa da Rede TALHER de Educação Cidadã talvez nunca tenha ouvido falar de Paulo Freire. Mas quando ela, num encontro de lideranças vindas de bairros e comunidades pobres do interior, começa a falar, lá está, na sua voz e no seu pensamento, a pedagogia de Paulo Freire, o grande educador pernambucano que faleceu há 10 anos.

Selvino Heck *
A senhora de uma pequena comunidade do semi-árido cearense que participa da Rede TALHER de Educação Cidadã talvez nunca tenha ouvido falar de Paulo Freire. Mas quando ela, num encontro de lideranças vindas de bairros e comunidades pobres do interior, começa a falar, lá está, na sua voz e no seu pensamento, a pedagogia de Paulo Freire, o grande educador pernambucano que faleceu há 10 anos. Ela tem coragem de falar com suas próprias palavras de como escuta as pessoas, de como no diálogo na comunidade abre-se ao novo, de como constrói novas idéias, reafirma valores e age solidariamente.
O ribeirinho do Amazonas sabe que não pode sobreviver sozinho, ainda que esteja fisicamente distante do vizinho mais próximo. Precisa juntar-se aos companheiros para organizar uma cooperativa popular que tenha um lugar coletivo para desenvolver os resultados de seu trabalho. Aproxima-se dos outros na solidariedade, aprende a ler, escrever e defender seus direitos.
O pequeno agricultor do sul, que sempre teve orgulho de sua propriedade, de não precisar de ninguém, de produzir tudo que precisa e come, aprendeu e apreendeu que o caminho coletivo leva mais longe e que afinal ele também, ainda que dono de meia dúzia de hectares de terra ou de uma colônia herdados de seu pai que antes eram de seu avô, também é oprimido e uma peça do sistema e de que pode ser opressor em relação ao sem- terra que nada tem, mas quer ser gente, cidadão, não trabalhar sempre sozinho e auto-prover sua existência, o que está sendo cada vez mais difícil.
Evanise, índia terena, diz que "é a vez das mulheres indígenas avançarem nos seus direitos. Não é só ganhar comida, cesta básica. É preciso plantar para que o governo seja o que somos e a gente consiga chegar onde quer. Este projeto do TALHER (que usa a pedagogia Paulo Freire, grifo meu) tem a nossa cara, a cara dos movimentos. Este projeto está fluindo muito." Ela descobre seu saber e sua força, quando se encontra com outros que são seus irmãos, não necessariamente apenas os iguais, mas também os diferentes, quando se auto-questiona, questiona a quem a cerca e é questionada por quem dela se aproxima e com ela participa das ações e reflexões coletivas.
Esta pedagogia do diálogo crítico construída na aproximação entre as pessoas, que assim melhor compreendem a realidade em que vivem, está hoje encarnada em centenas de ONGs, movimentos sociais, experiências solidárias, pastorais sociais, grupos organizados que se espalham pelo Brasil, tornando Paulo Freire presente, vivo.
O saber popular auto-conhecido e afirmado constrói o novo. Não prescinde dos ilustrados e intelectuais, mas acredita em primeiro lugar em si mesmo e na força do povo trabalhador explorado e oprimido como capazes de construir um mundo justo e humano, uma nação soberana e igualitária.
O que está enraizado não se destrói facilmente. Paulo Freire conseguiu atravessar os muros das Universidades, da escola formal e tornar a educação popular algo vivido na base da sociedade. A pedagogia freireana está hoje nas milhares de organizações da economia solidária, nos grupos de geração de trabalho e renda, nos movimentos que organizam os pobres, especialmente os mais pobres entre os pobres, porque aí as pessoas se encontram, se reconhecem, se sentem companheiros e companheiras de uma mesma jornada de lutas, de um mesmo projeto de busca do sonho de uma sociedade alternativa ao consumismo, individualismo e competição dominantes no dia a dia.
Para ele, Paulo, é isso que mais contaria. Menos doutor, mais intelectual orgânico. Menos alguém que sabe mais que os outros, mais alguém que aprende junto. Menos alguém lido (ainda que a leitura e o conhecimento pelos livros sejam muito importantes), mais alguém embebido em práticas e coerência. Menos alguém dono da verdade, mais alguém aliado dos humilhados e ofendidos. Menos alguém com poder, mais alguém a serviço. Menos alguém que orienta, mais alguém que age e constrói coletiva e solidariamente. Menos alguém que diz o que fazer, mais alguém que constrói democraticamente.Menos alguém que pensa e faz para, mais alguém que pensa e faz com. Menos de fora pra dentro, mais camarada, irmão, companheiro.
Quem viaja pelo Brasil, encontra Paulo Freire todos os dias, vivo. Isso é muito bom para nós todos e todas, para o Brasil, o povo brasileiro e latino-americano, para a humanidade. Afinal, como ele sempre disse, ‘o mundo não é; está sendo’.
* Assessor Especial do Presidente da República. Fundador e Coord. do Movimento Fé e Política

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