Tema deve ser incluído nas decisões macropolíticas, cobra Conferência

Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, aberta por Lula, pauta temas polêmicos, como transgênicos, agrocombustíveis e transposição, e quer mais peso na elaboração das estratégias nacionais de desenvolvimento.

FORTALEZA – A III Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, instância que, dentro da política de macrodebates setoriais do governo, deve elaborar as propostas relativas às políticas públicas que garantam a produção e o acesso adequado ao alimento de qualidade no país, foi aberta no final da tarde de terça-feira (3) pelo presidente Lula, em Fortaleza, e está se configurando como um interessante retrato da relação do governo com a sociedade civil no quesito políticas sociais.

Para abrir o evento com um impacto positivo, Lula anunciou duas medidas de incremento de carros-chefe de sua agenda social: o reajuste do Bolsa Família em 18,25% – o valor sobe de R$ 50 para R$ 58 – e a inclusão dos alunos de ensino médio como beneficiários da merenda escolar. Também prometeu mais investimentos no programa Luz para Todos, e garantiu que “até 2010, vamos acertar com a Funasa (Fundação Nacional de Saúde) a instalação da rede de esgoto e água potável em 90% das comunidades indígenas e em pelo menos metade das terras quilombolas”.

Com cerca de dois mil participantes de todo o país – representantes de diversas organizações ligados ao tema da segurança alimentar, indígenas, quilombolas, assentados etc –, a Conferência recebeu positivamente o discurso do presidente, mas, de acordo com o documento-base que pautará os debates do encontro nos próximos três dias, quer ir muito além das políticas sociais nas negociações com o governo. Ou seja, o que a Conferência cobra do Executivo é a incorporação dos objetivos de segurança alimentar e nutricional na definição da estratégia nacional de desenvolvimento.

O primeiro princípio a ser adotado na política nacional de segurança alimentar, de acordo com o documento do evento, é “garantir a todos alimentação adequada e saudável, conceituada como a realização de um direito humano básico”, que deve atender aos princípios da variedade, equilíbrio, moderação e sabor, e “às formas de produção ambientalmente sustentáveis, livre de contaminantes físicos, químicos e biológicos e de organismos geneticamente modificados”.

Incluída já na conceituação de “alimentação adequada”, a rejeição aos transgênicos é um dos itens que, desde a última Conferência do setor, ocorrida em 2004, contrapõe a sociedade civil ao governo e promete esquentar os debates. Neste item específico, a Conferência quer a revisão da Lei de Biossegurança, “com impedimento à produção e comercialização de alimentos transgênicos, uma vez que ameaçam a soberania alimentar dos povos, causam danos irreversíveis ao meio ambiente, prejudicam a saúde e inviabilizam a agricultura familiar, por manter o controle das sementes nas mão de grandes empresas”.

Outro ponto polêmico no qual o governo e a Conferência podem se chocar é o projeto de transposição do São Francisco. Ao mencionar a questão em seu discurso de abertura, o ministro Patrus Ananias (Desenvolvimento Social) recebeu uma vaia da plenária. O documento base pede um debate mais amplo e maior investimento na revitalização – incluindo a realização de um plebiscito no semi-árido setentrional –, mas, entre boa parte dos delegados da Conferência, o posicionamento contrário ao projeto parece predominante.

Por fim, os agro ou biocombustíveis também serão um tema polêmico. Cuidadoso, a princípio o documento-base da Conferência não arrisca um juízo sobre um possível prejuízo que a produção de alimentos sofrerá com o incremento do uso do solo agriculturável na produção de energia, mas cobra um controle dos acordos bilaterais para que não haja interferência no abastecimento interno de alimentos. O tema é um dos principais pontos de debate do evento, que deverá apresentar, nesta sexta, um posicionamento mais claro.

Peso político
Grosso modo, a Conferência enfatiza grande parte da demandas dos movimentos sociais do campo, como mais investimentos na produção familiar, agroecológica e soberana de alimentos, e reforça as críticas ao modelo agroindustrial hegemônico no país, principal responsável pela concentração de terras e pela exclusão social na área rural.

Em seus discursos, porém, os membros do governo, como Patrus Ananias e o ministro Guilherme Cassel (Desenvolvimento Agrário), apesar de manifestar apoio a agendas a limitação do tamanho de terras, a atualização dos índices de produtividade, a expropriação de terras onde foi detectado trabalho escravo (Patrus), e críticas ao latifúndio e às monoculturas (Cassel), advertem que a correlação de forças externas e internas no governo são o verdadeiro fiel da balança no estabelecimento das políticas de Estado. Ou seja, é preciso levar em conta a existência de interesses conflitantes, e há que se negociar o possível.

”É importante que conflitos de interesses seja explicitados e que não simplifiquemos os debates. Vamos sonhar alto, mas com os pés no chão”, advertiu o ministro Patrus. E concluiu: “O agronegócio existe e tem poder. Temos que colocar os limites. Limites são fundamentais, mas não estamos [os movimentos sociais] sozinhos, existem outros interesses com poder”.

Questionado sobre o peso real das deliberações da Conferência na definição de políticas de Estado, Patrus ponderou que tanto a Conferência quanto o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea, composto por 17 ministérios e por representantes da sociedade civil, e responsável pelo encaminhamento das deliberações da Conferência junto ao Executivo) têm caráter consultivo e não deliberativo.

”O governo tem a responsabilidade de compor diferentes interesses, e o Consea não pode substituir os espaços institucionais, como o Congresso Nacional”, pondera, mas acrescenta: “o Consea tem muita força”. Perguntado ainda se, pessoalmente, enquanto secretário do Consea e ministro, defenderá as decisões da Conferência no governo, Patrus afirmou que será um aliado das decisões dos delegados, preservando, porém, seus posicionamentos políticos.

Depois da última Conferência, ocorrida em 2004, movimentos ligados à Via Campesina, como o MST, deixaram o debate argumentando que o governo desconsiderou grande parte das deliberações, principalmente ao legalizar o plantio de culturas transgênicas, cujo banimento havia sido deliberado na Conferência.

Membro do Fórum Brasileiro de Segurança Alimentar e Nutricional e professor da UFRRJ, o economista Renato Maluf, relator do Consea, considera o Conselho um espaço em que os conflitos de interesse do próprio governo são explicitados. No quesito eficácia, apesar de ter sido eficiente nas elaborações de propostas, no acolhimento e na execução das deliberações da sociedade civil, o Consea deixa a desejar. Segundo Maluf, é possível que a constituição do Conselho interministerial dê mais agilidade às políticas de segurança alimentar, uma vez que sua função é recolher contribuições e propostas de políticas e transformá-las em programas de governo, mas, sobre as deliberações da Conferência, o executivo “pode aceitar ou não e quem resolve é a política”.

Verena Glass – Carta Maior

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