Política reparatória a descendentes de escravos causa polêmica e gera reações em Nossa Senhora do Livramento (MT),
Antonio Benedito Conceição, "Seu" Antonio Mulato, de 102 anos – "caminhando para os 103", como ele faz questão de ressaltar – e o recém-nascido Igor Rafael compõem a linha do tempo na comunidade de remanescentes do quilombo Sesmarias Boa Vida-Mata Cavalos, localizada no município de Nossa Senhora do Livramento, a 37 quilômetros de Cuiabá (MT), onde vivem atualmente cerca de 418 famílias. São cinco gerações de afro-descendentes resistindo a mais
de um século de conflitos com fazendeiros que também reivindicam a propriedade de 15 mil hectares de terras doados por Anna da Silva Tavares a 34 escravos em 1883 – cinco anos antes da abolição da escravatura no Brasil. Ela cumpria testamento do falecido esposo e, assim, os escravos se tornaram proprietários de terras. Um deles era o pai de Antonio Mulato. Entretanto, os negro s lutam até hoje pela posse oficial dessa terra, que está nas mãos de fazendeiros da região, profundamente marcada pela lógica dos tempos coloniais. Em 1890, dois anos após a doação, um casal pedia na Justiça mato-grossense a desocupação do imóvel, sob a alegação de que negros não podiam ser proprietários de terras. Por causa dessa difícil coexistência entre quilombolas e fazendeiros, Igor Rafael já nasceu despejado de seu território – em um barraco coberto de palha à beira da Transpantaneira (BR 060), entre Cuiabá e Poconé, onde seus pais estão acampados.
Mata Cavalos é uma das mais estruturadas dentre as 1.170 comunidades de remanescentes de quilombos identificadas pela Fundação Cultural Palmares, vinculada ao Ministério da Cultura. Ao todo são mais de quatro mil no País, somando mais de 3 milhões de pessoas e potencial de 200 milhões de hectares de terras. Os únicos estados onde não foi encontrada nenhuma até agora são o Acre, Roraima e Distrito Federal.
Apesar de constituírem um grupo étnico e social expressivo, esses brasileiros viveram na invisibilidade de 1888 até a Constituição de 1988, quando a Carta Magna reconheceu os direitos territoriais e culturais dos remanescentes de quilombolas, enfatiza a procuradora federal Ana Maria Lima de Oliveira, que até semanas atrás comandou o processo de certificação na
função de procuradora-chefe da Fundação Palmares. "Essa parte da nossa história finalmente começou a ser recontada", afirma. A implantação desses assentamentos foi ensaiada no governo Fernando Henrique Cardoso e deflagrada em 2003, quando o presidente Luiz Inácio Lula
da Silva editou o decreto 4.887, regulamentando os processos de identificação, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes dos quilombos, previsto no Artigo 68 da Constituição Federal. No mesmo decreto, a responsabilidade pela titulação das terras
tradicionalmente ocupadas por essas comunidades foi atribuída ao Instituto Nacio nal de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e não mais à Fundação Palmares, que ficou encarregada da expedição dos certificados. A intenção foi evitar que as titulações fossem contestadas, como ocorreu com as poucas áreas regularizadas no governo anterior. Também foi criada a Secretaria de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), com sta-tus de ministério, para preservar a cultura negra no Brasil.
Mesmo que nos últimos cinco anos o governo tenha conferido prioridade à devolução desses territórios, na prática, no final do segundo mandato, em 2010, deverá estar concluída somente a titulação de uma pequena parcela dessas comunidades. Dados extra-oficiais apontam que cerca de 500 processos foram abertos pelo Incra. Desses, cerca de 40% estariam chegando ao final.
Procurado pela reportagem para informar o balanço da demarcação fundiária dessas áreas, o Incra não quis se pronunciar. "A gente reconhece que o atual governo fez essa questão avançar muito, mas das trinta comunidade seleitas como prioritárias, nenhuma ainda foi titulada", afirma Gonçalina Eva de Almeida e Silva, uma das lideranças das seis associações de moradores existentes em Mata-Cavalo e bisneta de Antonio Mulato. Os conflitos ainda são de toda ordem. Freqüentes decisões judiciais dando a reintegração de posse das terras aos fazendeiros resultam no despejo de ocupantes de áreas em litígio. Constantes decisões judiciais são concedidas
especialmente porque, segundo os juízes, em alguns casos, os fazendeiros não foram ouvidos no processo de desapropriação. Isso foi o que aconteceu em Mata Cavalo, em maio, atingindo cerca de 100 famílias da comunidade.
Para a subsecretária de Política para Comunidades Tradicionais da Seppir, Givânia Silva, esses essas disputas fazem parte do processo. "Estamos vivendo um momento muito interessante no País. Se por um lado temos um governo sinalizando a necessidade de evidenciar ações para estes grupos, por outro surgem reações de setores da sociedade", afirma. Semana passada, a Câmara arquivou projeto de decreto legislativo que pedia a suspensão do decreto 4.887/2003. A proposta foi enterrada por ignorar a todos os tratados internacionais acerca do direito à propriedade a grupos raciais, dos quais o Brasil é signatário. "Todos os recursos, inclusive
jurídicos, são usados para protelar a devolução desses territórios aos verdadeiros donos", enfatiza Ana Maria Lima de Oliveira. Segundo ela, essa reação dos fazendeiros está ocorrendo na maioria das comunidades em estágio avançado de legalização, como na Comunidade São Francisco do Paraguaçu (BA).
Reportagem veiculada em rede nacional de televisão em meados de maio apontou suspeita de fraude no processo de reconhecimento da comunidade, reconhecida pela Palmares. A área de cinco mil hectares é alvo de uma intensa disputa por famílias de fazendeiros. A mesma reportagem colocou em dúvida o fato de os ocupantes da terra descenderem de escravos.
Diante da repercussão do caso, o presidente da Fundação Palmares, Zulu Araújo, suspendeu os processos de certificação por trinta dias – enquanto durar a sindicância administrativa instaurada para apurar se houve desvio na concessão da certidão de auto-reconhecimento daquela comunidade.
Os choques atuais seguem a tradição histórica. Como relata a antropóloga Edir Pina de Barros, no laudo pericial histórico-antropológico realizado para o processo de titulação comandado pelo Incra, "Manoel Monteiro se apropriou das terras doadas aos escravos, utilizando-se do recurso de
resposta a um edital de usucapião e do fato de os negros serem analfabetos e sem acesso à informação. O grande marco é 1943. A partir daí as persegui&cc
edil;ões aumentaram". A demarcação das terras é baseada na Constituição de 1988 – artigos 215 e 216 -, que legitima a cultura negra como formadora da sociedade brasileira e o artigo 68, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, diz que o Estado deve titular as terras ocupadas por essa parcela da população.
"Tivemos um lapso temporal entre a Abolição e a Constituição de 1988, de completa invisibilidade desses negros no Brasil", ressalta a procuradora federal Ana Maria Lima de Oliveira.
"Os índios são os primeiros donos do território brasileiro; os europeus vieram na condição de colonizadores; e os negros, que aqui chegaram na condição de escravos. Esse é o tripé da formação do povo brasileiro. Independentemente da cor da pele, todos temos um pé na oca, um na senzala e outro na Europa", afirma Ana Maria.
(Gazeta Mercantil/Caderno A – Pág. 6)(Liliana Lavoratti)