A quem cabe o papel de alfabetizar a população brasileira? A pergunta vem à tona quando se questiona a atuação de Organizações Não Governamentais (ONGs) que atuam na área da alfabetização.
O Brasil investe cerca de 3,5% do PIB em toda educação pública – o que é a metade do que recomenda a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Diante de um quadro de omissão do Estado brasileiro, as ONGs entram como parceiras do governo cooperando com o processo de alfabetização da sociedade, há troco de isenção fiscal e injeção de recursos públicos.
A ONG Alfabetização Solidária, fundada pela esposa do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, Ruth Cardoso, é exemplo de tal processo. A entidade recebeu R$ 58 milhões entre os anos de 2003 e 2006, e alega que formou 653 mil jovens nesse período.
Em entrevista à Radioagência NP, o especialista em educação e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Roberto Leher, discute a validade dos números apresentados e o caráter do ensino aplicado por esses organismos.
Ouçam agora a entrevista:
Radioagência NP: Diante de tais fatos, qual o ponto central que merece ser discutido?
Roberto Leher: Há uma clara explicitação de que o Estado está se eximindo de responsabilidades que são suas. Para mim, a questão de fundo hoje dessas parcerias é a quem compete organizar e estruturar dispositivos que assegurem a alfabetização da juventude e dos trabalhadores que não puderam se alfabetizar e escolarizar no período formal. No meu entendimento isto é um dever do Estado e deveria caber aos educadores, às escolas e mesmo a interação com movimentos sociais participar, mas sempre organizando isso a partir do aparato educacional [do Estado] e não por meio de iniciativas que são privadas.
Radioagência NP: Há como medir se os dados que essas organizações passam são reais ou não?
R.L: Há um esforço enorme em fazer esse censo pelo Inep [Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais], mas esse censo se organiza e se estrutura a partir do sistema de ensino. Essas iniciativas que são atomizadas têm um controle social por parte do Estado muito débil. Somente investigações acadêmicas vão poder dilimir esta questão, se de fato houve esta alfabetização e se o número que a ONG declara é real. Eu não conheço dispositivo dentro do Ministério da Educação que permita ele fazer este tipo de aferição. Então na realidade prevalece a palavra de quem oferece isso que eles [ONGs] entendem como um serviço.
Radioagência NP: Quais as conseqüências desse processo?
R.L: Nós temos um sistema educacional pauperizado que é compreendido como um sistema de ensino pra pobre que vai ter uma educação pobre, alijeirada, em suma é um ciclo vicioso. Quando o Estado, em vez de encontrar mecanismos e buscar a canalização de recursos para a rede pública, começa a dispersar recursos por diversas fontes, por meio de isenção fiscal e nós temos inúmeros exemplos de isenções fiscais no campo da educação, é claro que está havendo uma sangria de recursos públicos para o setor privado.
Radioagência NP: Que questionamentos podemos fazer a partir deste processo?
R.L: Eu poderia perguntar que tipo de alfabetização ou qual o conteúdo da alfabetização de uma ONG que é claramente vinculada a uma força política no país – que no caso aqui seriam os tucanos. Será que de fato é uma educação laica no sentido de uma educação crítica, capaz de, como Paulo Freire nos ensinou, pressentir que os jovens e adultos possam ter uma leitura crítica e aguçada da vida real, da estrutura econômica e das políticas? Porque na realidade essas ONGs, e isso na América Latina inteira, acabaram servindo como braço político de forças políticas. Será que essa ONG dirigida pela professora Ruth ela de fato tem autonomia completa em relação ao campo político que ela pertence e representa? Eu tenho dúvidas sobre isso.
Vocês acabaram de ouvir a entrevista com o professor da UFRJ, Roberto Leher.
De São Paulo, da Radioagência NP, Juliano Domingues.