Quem matou a cidadania?

Lula Miranda

Fiz uma pesquisa avançada na internet com a expressão “Quem matou Thaís?”, como resultado obtive mais de 18.000 páginas. Fiz, em seguida, a mesma pesquisa com a expressão “Quem matou a cidadania?”. Não foi apontado registro algum.

Quem matou “fulana”? – foge-me agora o nome da tal “fulana”. “Fulana”, no caso, era apenas uma personagem de uma novela e, no capítulo final, depois de um bem fornido e alentado suspense, até que enfim, e, no fim, finalmente, revelar-se-ia o nome do seu assassino [o uso da mesóclise, nesse caso, estaria correto?].

Na sexta-feira da semana passada, 28/09, uma data por assim dizer “histórica”, as pessoas só falavam disso – no trabalho, no restaurante na hora do almoço, no cafezinho, no Congresso, em todos os lugares. Também na internet! Nas chamadas dos sites – e até em alguns blogs. Em colunas de opinião e artigos de fundo! A pergunta era a mesma, ubíqua, onisciente: quem matou “fulana”? (Soube, por intermédio dos noticiosos, que vernissages, shows e espetáculos de teatro foram cancelados ou retardados, pois o país parara para conhecer o desfecho da trama). Juro que, numa espécie de ato-reflexo, quando li ou ouvi, pela enésima vez, essa pergunta [“quem matou “fulana”?], veio-me à cabeça uma outra indagação: quem matou a cidadania?

Sim, quem matou a cidadania? Que espécie de teleguiados somos nós!?Pois, em meio a tantas questões urgentes: a corrupção endêmica, nossa iníqua concentração de renda, a violência urbana, o déficit habitacional, os hospitais sucateados, o sistema educacional em “frangalhos”, as Febem e os cárceres superlotados, os fantasmas do desemprego, da terceirização e da privatização a nos assombrar; em meio a tanta coisa para se (pré)ocupar, muita gente só falava, só pensava em quem matou a tal “fulana”.

Ah! As novelas, algumas delas, já tratam desses temas, servindo, inclusive, como instrumento de cidadania – diria você, leitor mais ponderado e crítico, ou apenas mais um noveleiro dissimulado em busca de uma boa e esfarrapada desculpa. Sendo assim, então só nos restaria dizer em uníssono: Ó novela, rogai por nós! Ó novela, vivei por nós!

No país dos “zumbis” hipnotizados pelas novelas e programas de auditório, você pode até estar me achando um chato de galochas por trazer essa questão à pauta. Não lhe tiro a razão pelo incômodo e desconforto. Mas alguém tinha que levantar essa bola – que seja eu o “chato” de plantão, então.

Pena que a nossa memória seja tão débil, senão saberíamos todos (ou lembraríamos todos) que essa história, esse artifício de “quem matou fulano”, é bastante antiga e que essa fórmula já deveria estar esgotada completamente, mas…

Todo ano, a cada novela das oito, é a mesma questão: quem matou “fulana(o)”?; quem matou “beltrano(a)? Você deve se lembrar. Quem matou Lineu? Quem matou Odete Roitman? Quem matou Thaís?[ lembrei: esse era o nome da “fulana”]. Beira o ridículo, mas caímos sempre na mesma cilada do suspense barato, folhetinesco. Experimentamos e submergimos na mediocridade, como num moto perpétuo. Por isso, faço aqui a inconveniente pergunta: quem matou a cidadania?

Acho o fim da picada – seguindo essa picada, creio restar só mesmo o abismo – que pessoas, notadamente os jovens, percam seu tempo precioso de descanso e lazer assistindo novelas (conheço muita gente que vive em desespero ou desalento, pois os filhos não desgrudam da televisão). Preocupam-me, sobremaneira, os jovens, pois os jovens, mais que os anciões ou os mais maduros, necessitam viver, experimentar a vida. Necessitam escapar dessa cilada da alienação paralisante. Novela é para aquele indivíduo que desistiu de viver sua própria vida e se apraz em viver as vidas falsas, rocambolescas e fantasiosas dos personagens das novelas.

Dizem que novela é uma boa terapia para quem está deprimido, mas discordo. Para mim, assistir novela é em si deprimente. O indivíduo vai afundando naquele sofá, o mofo vai se apoderando de seu corpo e de sua mente. O sujeito deixa de ser um cidadão e se transforma numa espécie de musgo ou vegetal.

Pensem comigo se não há muito mais coisas interessantes para se fazer!? Nem ousaria, para não cair de vez na antipatia do leitor, dar como alternativa a leitura de um bom livro – embora por ofício tenho obrigação de fazê-lo –, uma vez que livro dá urticária ou preguiça em muita gente, mas se poderia, por exemplo, navegar na internet – só não pode ficar “de bobeira” em chats de bate-papo-furado, pois aí já é pura perda de tempo. Poder-se-ia ainda bater um bom papo em família. Conversar, um pouquinho que fosse, com a esposa, com os filhos ou com os irmãos. Poder-se-ia telefonar para aquele parente, ou amigo, tão distante e nem tão esquecido assim. Ir ao teatro, ao cinema? Fazer uma faculdade, estudar! Ou apenas dar uma volta, um “rolê”. Sair para ver a lua(!). Se você, enfeitiçado que está, já não consegue mesmo desligar o maldito aparelho de TV, poderia então assistir a um bom filme em DVD, ou a um bom documentário ou programa jornalístico. Você pode, por fim, escapar dessa armadilha tediosa e… namorar!

Enfim, são tantas as alternativas às novelas e suas estórias tão manjadas que não entendo o por quê de tanta gente desperdiçar a vida em frente a um aparelho de televisão. A única explicação possível seria a tese de que estamos mesmo sofrendo uma mutação. Deixando pouco a pouco de sermos cidadãos, cheios de vida e tesão, e nos transformando paulatinamente em uma espécie de planta ou musgo.

Os estimados Janine e o Deleuze que me perdoem, mas eu acho novela (e televisão), repito, o fim da picada: o abismo.

Um aviso aos navegantes: a cidadania, embora bastante alquebrada, e até convalescente, ainda não morreu. Ninguém consegue, por mais que tente, “matar” a cidadania. A despeito dos chamados “exterminadores da cidadania” (veículos como a Veja, “Estadão” e o/a Globo), a cidadania ainda resiste. Graças a veículos como Carta Maior, Caros Amigos, Revista do Brasil e Carta Capital, e também graças aos “guerreiros” que militam na internet (e fora dela) por uma comunicação mais democrática, plural e cidadã. A cidadania ainda vive. Vida longa à cidadania!

N.A Uma curiosidade: fiz uma pesquisa avançada no Google com a expressão “Quem matou Thaís?”, como resultado obtive mais de 18.000 páginas (mais de um milhão e meio de registros). Fiz, em seguida, a mesma pesquisa com a expressão “Quem matou a cidadania?”, que intitula esse artigo, e não foi apontado registro algum (zero) – o que não ocorrerá mais, decerto, a partir da publicação desse texto.

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