Selvino Heck
Na Rede TALHER de Educação Cidadã, desde os tempos de Frei Betto uma frase-síntese serve de referência: É PRECISO MATAR A FOME DE PÃO, SIM, MAS, TAMBÉM E IGUALMENTE, SACIAR A SEDE DE BELEZA.
Letra
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A falta de pão, que no século XXI ainda atinge bilhões de seres humanos, é a mais dramática urgência da humanidade. Na verdade, não é falta de pão, porque pão existe em abundância. Os alimentos produzidos hoje no mundo são mais que suficientes para alimentar todas e todos. O que não há é a distribuição do pão produzido, o que não há é renda partilhada. O que há é o excesso de riqueza de poucos, por um lado, e a absoluta pobreza e miséria de muitos, por outro. Tanto que um dos Objetivos do Milênio, o primeiro e fundamental, é reduzir pela metade a extrema pobreza no mundo até 2015. E não está fácil atingi-lo. Felizmente, como escreveu o ministro Patrus Ananias, do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, em artigo referente ao Dia (16 de outubro) e Semana (15 a 19) Mundial da Alimentação, o Brasil já ultrapassou o primeiro dos 8 Objetivos do Milênio da ONU, reduzindo o índice de brasileiros que vivem com menos de um dólar por dia – de 11,7%, em 1992, para 4,6%, registrados no ano passado.
O Fome Zero, diz o ministro Patrus, propõe, de forma articulada, ações emergenciais e estruturantes, superando a falsa dicotomia entre dar o peixe e ensinar a pescar. Em muitos casos, para ensinar a pescar é necessário dar o primeiro peixe, porque, de barriga vazia, ninguém se sustenta em pé. Sem alimentação adequada, em quantidade, e regularidade suficiente, não há saúde. A criança com fome, quando consegue ir à aula, não consegue aprender. Sem aprender, o adulto não consegue se posicionar no mercado de trabalho de maneira digna.
É o primeiro passo, que permite o segundo. Nos tempos de moradia e militância nas vilas da Lomba do Pinheiro, arredores de Porto Alegre, anos 70 e 80, de vez em quando vinha uma dúvida, resolvida no dia a dia do aprendizado das pastorais e da luta popular. Não bastava reunir as famílias ao redor da Bíblia nos grupos de reflexão, se a leitura bíblica não levasse à ação concreta, a conquistas reais na vida das pessoas. Ou as pessoas não participavam mais, ou tornava-se um blá-blá-blá vazio, sem efeito, inútil. Não bastava estimular a presença na Associação de Moradores se não se saísse das reuniões para brigar junto ao prefeito ou aos poderes públicos por saneamento, posto de saúde, escolas, transporte público de qualidade. A ação levava à reflexão, esta a uma nova ação.
Mais ainda. A luta e as conquistas levavam à conscientização. Cada vitória unia mais os moradores, que iam à busca de novas conquistas e melhorias de vida. E partilhavam entre si o que tinham, seja o material, seja o espiritual. Assim se construía a cidadania, a consciência dos direitos, a compreensão do mundo, a certeza de que todos são igualmente filhos de Deus e cidadãos de oportunidades iguais, o que levava a ter esperança, a crer no futuro, a sonhar com uma sociedade nova, diferente.
Matar a fome de pão não está separado de saciar a sede de beleza. Sem pão, não se pode pensar em justiça. Mas só o pão não leva à justiça. Muitas revoluções generosas perderam-se na história e fracassaram por acharem que o pão, a renda, o pleno emprego, a política industrial, o país economicamente forte eram suficientes. E não atentaram para a democracia, a participação, o respeito coletivo do indivíduo e das diferenças, o exercício da cidadania, o engrandecimento e cultivo espirituais, seja no plano individual, seja no espaço social e coletivo.
Acabar com a fome de pão e saciar a sede de beleza são inseparáveis para quem aspira um mundo justo e humano e quer construir valores diferentes do consumismo, da competição, da busca desenfreada do lucro e do individualismo capitalistas.
Hoje saciar a sede de beleza compreende e inclui os cuidados com o meio ambiente e a preservação da natureza, a compreensão de que todos e todas são iguais e diferentes ao mesmo tempo, que todos e todas, sem exceção, têm direitos e merecem oportunidades, todos e todas podem conviver em harmonia, que a solidariedade irrestrita é marca do ser humano, que a justiça é o nome da paz.
Que o Dia e a Semana Mundial da Alimentação ajudem a alimentar a consciência da necessidade urgente de repartir o pão e abram os seres humanos à beleza da vida e do amor.
* Assessor Especial do Presidente da República. Fundador e Coord. do Movimento Fé e Política