Em entrevista para o Jornal do Brasil
"A principal razão de ter deixado o governo foi a descaracterização do Fome Zero. O programa foi criado para ser emancipatório, para a família miserável permanecer nele durante um ano e meio e depois disso estaria em condições de produzir a própria renda. De repente, a Casa Civil transformou o programa em eleitoreiro. Não podia concordar com isso. Fiz minha luta interna para ver se mudava, fui derrotado, com isso deixei o governo. Na verdade, não consegui convencer o presidente que ele veio para fazer mudanças estruturais na sociedade brasileira, inclusive a Reforma Agrária."
Carla Andrade, Agência JB
RIO – Adepto da Teologia da Libertação, Frei Betto sempre foi militante de movimentos pastorais e sociais. Ocupou a função de assessor especial do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, entre 2003 e 2004, e se tornou coordenador de Mobilização Social do programa Fome Zero.
O Frei recebeu vários prêmios por sua atuação em prol dos direitos humanos e a favor dos movimentos populares. Assessorou vários governos socialistas, em especial Cuba, nas relações Igreja Católica-Estado.
JB Online O senhor lançou dois livros nos últimos anos. Calendário do Poder e Sobre a Esperança, em parceria com Mário Sérgio Portella. Conte como foi a experiência e porque a idéia de escrever.
Frei Betto – Na verdade, o Calendário do Poder, é meu diário de dois anos no Planalto. Me senti na obrigação de prestar contas ao contribuinte brasileiro que me sustentou e para o qual eu trabalhava. E minha forma de fazer isso foi através da literatura. Tinha por hábito, toda primeira semana do mês, fazer um relatório minucioso do que fiz dia por dia ao presidente da república, do qual era assessor especial, esta foi a base para o livro. Que eu saiba é a primeira vez que alguém que passou por dentro da baleia do poder, contou como funcionam as coisas do lado de dentro. Reuniões de ministros, ascensão e queda do Fome Zero, articulações políticas, suspeitas de corrupção, está tudo no livro.
Sobre a Esperança é um diálogo meu com o professor Mário Sérgio Portella. Ele fala exatamente sobre a esperança. Porque hoje vivemos num mundo de desesperança, de desencanto, deste festival de necrologia, fim da utopia, fim de valores, fim de tudo. Quero resgatar um pouco a esperança neste mundo pós-moderno tão desesperançado, com cores feias.
JB Online O senhor tocou num ponto crítico da sociedade moderna: a violência. Tem gente que já se acostumou e que não sente mais nada ao ver gente morrendo por bala perdida ou chacinas em favelas. A violência banalizou. O senhor acredita que isso possa mudar?
Frei Betto – Ainda me assusto muito com a violência. Primeiro porque acho que ela é muito fácil de ser radicada. Ela não vem da miséria, ela vem da cultura. Cria-se uma cultura de levar vantagem, da prepotência, do acima da lei. Durante as palestras que faço para jovens, costumo dizer isso que a violência não vem da miséria. Existem países tão miseráveis na África que proporcionalmente não são tão violentos quanto o Brasil. O país mais violento do mundo é o mais rico: os EUA.
Banalizou a violência, assim como a miséria. Fico muito indignado ao ver um ser humano jogado na calçada, mas tem gente que não liga. As pessoas simplesmente passam. Nos ainda estamos na pré-história da humanidade, ou seja, ainda elaborando os valores humanos. No ano que vem vamos comemorar 60 anos da Declaração dos Direitos Humanos e tem gente que diz que isso é para defender bandidos. Ainda estamos numa etapa primária da consciência da dignidade, felicidade e da sacralidade humana.
No entanto, acredito em mudanças. Se diminuirmos as desigualdades sociais, se criarmos uma cultura de vida e não necrófila. Tenho muita esperança na criação de outra cultura e que haja muito investimento e educação. A última pesquisa do IBGE mostra que tem 8 milhões de jovens no Brasil, de 18 a 25 anos, sem terminar o ensino médio e, com isso, não conseguem entrar no mercado de trabalho. A vitória do sistema neoliberal é convencer as pessoas de que isso que tai é eterno. É a pior lavagem cerebral que existe. Nos imobiliza. Achar que não vai mudar é das a vitória ao sistema. Temos condições de mudar isso sim, não podemos desistir.
JB Online O senhor foi mentor do Programa Fome Zero e depois de dois ano deixou o governo por discordar dos rumos que ele tomou. Ainda acompanha o andamento da ação e o que acha dela?
Frei Betto – A principal razão de ter deixado o governo foi a descaracterização do Fome Zero. O programa foi criado para ser emancipatório, para a família miserável permanecer nele durante um ano e meio e depois disso estaria em condições de produzir a própria renda. De repente, a Casa Civil transformou o programa em eleitoreiro. Não podia concordar com isso. Fiz minha luta interna para ver se mudava, fui derrotado, com isso deixei o governo. Na verdade, não consegui convencer o presidente que ele veio para fazer mudanças estruturais na sociedade brasileira, inclusive a Reforma Agrária. Nunca vamos conseguir modernizar o capitalismo brasileiro sem a reforma, muito menos erradicar a miséria. Continuo dizendo que o Brasil e a América Latina estão melhores com o Lula do que sem ele. Claro que tenho muitas decepções com este governo, mas também destaco as conquistas. Agora, no Fome Zero, que virou um mero Bolsa Família, houve uma descaracterização absoluta. Continuo acompanhando os trâmites e continuo fazendo a grande pergunta que fazia antigamente: qual será a saída para essas famílias?
Meu medo é que amanhã, retorne um governo de direita e acabe com tudo e faça com que essas famílias retornem a miséria. No momento não me orgulho do programa, porque virou um programa voltado para interesses eleitorais. Me orgulho do que fiz.
[ 18:56 ] 03/11/2007