Chagas de um flagelo sem fim

As marcas no corpo de Manuel, 4 anos, são um pedido de socorro. A mãe espera, em vão, a cura pela fé

O corpo de Manuel Ferreira da Costa, 4 anos, carrega as chagas da fome. Ali, no Sítio São João, distrito de Ouricuri, Sertão de Pernambuco, a morte anda à espreita. Ronda o barraco de barro de Francisca Maria de Jesus da Costa, 45, um lugar miserável impregnado pelo cheiro de lixo e de cachaça. Manuel não fala. Não chora. Mal anda. Acostumou-se à dor como se já tivesse nascido com ela. Suas feridas expostas denunciam a miséria que o levou ao grau mais grave de desnutrição, bem abaixo da linha vermelha que, no cartão que mede o peso das crianças, separa a vida da morte.

O menino precisa de um médico urgente, mas Francisca, a mãe, parece não perceber que seu filho pede socorro. Ela prefere tratar as feridas espalhadas pelo corpo do garoto com o remédio da fé. Passa a “legítima” Pomada do Padre Cícero, um potinho redondo que consegue apenas estancar o sangue que sai das chagas de Manuel. “Quem anda com Deus, com Deus se acaba. Eu tenho fé que ele vai ficar bom”, diz, sem entender que a doença que corrói a pele do filho se cura com comida, não com reza.

Em vez de tratamento, Manuel passa fome e perde peso. O corpo minguado estava ainda mais magro, quando a reportagem pediu a um agente de saúde que o pesasse. Pouco mais de 11 quilos, quando deveria ser quase o dobro. Suas pernas finas se confundem com as de Francisca. Mãe e filho têm pele de velho. Em menos de 15 dias, o menino havia deixado escapar quase um quilo. Estava se acabando a olhos vistos. Mas não sentia nada, nem tinha como sentir. Francisca, além da fé em Deus, gosta de seguir as crendices dos homens. Ensinaram a ela que para ajudar a aliviar a dor devia dar ao filho diclofenaco, um analgésico indicado para inflamações e edemas. E é isso o que ela faz. Dissolve um comprimido na mamadeira com água e dá para Manuel beber, “dia sim, dia não”, assim que ele acorda.

O menino toma o remédio de barriga vazia. O JC chegou à casa de Francisca às 7h e os filhos, sete ao todo, ainda estavam levantando. Manuel dormia nu. O lençol que lhe cobria o corpo estava sujo do sangue de suas feridas. A conversa avança, a hora passa, e nada de comida para as crianças. Na casa só tem café, um quilo de arroz e outro de feijão. A reportagem abre um pacote de bolacha, trazido na viagem. Os meninos molham o biscoito no café e comem ali mesmo no chão, o mesmo chão de barro batido onde, há alguns meses, o pai foi assassinado com três tiros, na frente dos filhos. Pagou com a vida uma dívida de R$ 10. Os meninos nem ligam. Estão anestesiados. Misturam fome e violência no mesmo prato do abandono.

Francisca vive do Bolsa-Família (R$ 92) e de uma pensão de um salário mínimo (R$ 415) que passou a ganhar após a morte do marido. O dinheiro pouco para a família grande não vai só para comida. É gasto também com bebida, porque se Francisca não tomar “pelo menos dois dedos de cana” seu corpo bota para tremer. Faz isso logo quando acorda. Por isso a reportagem chegou tão cedo a sua casa. Antes que ela começasse a tremer e corresse para o bar. O vício da mãe ameaça os filhos. Numa conversa reservada, José, 8, irmão de Manuel, entrega que já tomou cachaça e cerveja. “Quando bebi Pitú, fiquei tonto e com sono”, confirmando uma desconfiança da agente de saúde que, estarrecida, sentiu o bafo de álcool na criança na hora da pesagem.

Pressionada, Francisca promete levar Manuel ao médico. É, pelo menos, meia hora de caminhada a pé, o que torna tudo mais complicado. Para facilitar, o JC acompanha a agente de saúde até o posto e a consulta é marcada logo para o dia seguinte. O menino tem pressa. E sorte de ainda estar vivo, resistindo ao drama de uma desgraça anunciada.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

7 + 4 =