IPEA e Tarifa Zero: O óbvio que bate à porta

IPEA e Tarifa Zero: O óbvio que bate à porta

Enfim, que a Tarifa Zero não é uma ousadia transgressora, mas o óbvio que bate à porta.

 

July 05, 2013 por: paique categoria: blogspaíque

Relato e análise da Nota Técnica do IPEA “Tarifação e financiamento do transporte público urbano”

A nota técnica “Tarifação e financiamento do transporte público urbano” foi lançada na manhã do dia 04 de julho de 2013 em Brasília, na sede do IPEA. Trata-se de um relatório escrito com colaboração de nove pesquisadores da instituição que vem trabalhando sobre o tema do Transporte Coletivo Urbano (TCU) no Brasil com alguma regularidade há pelo menos quatro anos. Porém este é o primeiro documento da instituição que trata não só de diagnósticos da mobilidade urbana nacional mas que também elabora sobre as possibilidades de solucionar este problema. É sintomático que estudos deste tipo surjam após a grande rodada de mobilizações que tomou todo o Brasil colocando a redução das passagens em pauta. O próprio texto se justifica, em sua introdução, como uma resposta ao debate iniciado nas ruas. Basearei este relato tanto no documento da própria nota (disponível aqui) como também no debate que realizamos na coletiva de imprensa de lançamento da mesma, onde algumas informações não tão explicitadas no texto escrito foram apresentadas pelo coordenador da pesquisa, Carlos Henrique Ribeiro de Carvalho. O vídeo do evento está aqui.

O documento divide-se em quatro capítulos. O primeiro, com caráter de diagnóstico, trata da evolução do preço da tarifa e do seu peso no orçamento das famílias brasileiras, com incisões sobre a disparidade em relação às rendas e gastos com transporte. Apresentam-se alguns dados relevantes, como o de o crescimento da tarifa de 2000 a 2012 ter sido de 67% acima da inflação, o que junto à desoneração do setor automotivo torna progressivamente o uso do carro próximo ou mesmo mais barato que o uso cotidiano do TCU; o dado de que as famílias mais pobres são as que mais usam o transporte coletivo e percentualmente são as que mais pagam por ele; a exclusão que a tarifa gera na sociedade, chegando ao dado de que entre 3% e 6% das famílias dos nove maiores núcleos urbanos do país tem gasto zero com transporte, ou seja, não tem dinheiro para pagar tarifa. Sugere-se que a crise da mobilidade urbana não foi mais acirrada ainda em função do crescimento de renda de alguns setores da população brasileira, que migrou ao automóvel e/ou pode acompanhar minimamente o vertiginoso crescimento do preço das passagens.

O segundo capítulo descreve e analisa a composição dos custos do serviço de TCU no Brasil e apresenta a bandeira da desoneração das empresas como solução imediata. Descreve-se a fórmula atual de custeamento do transporte: tudo pago pelos usuários/as. Baseado no Índice de Passageiro/a por Quilômetro (IPK) e custeado principalmente pela tarifa, a fórmula de financiamento do transporte é, na prática, o custo total do serviço divido pelo número de passageiros/as. Uma vez que os custos vem subindo (principalmente aumento do diesel) e o número de usuários/as vem diminuindo (migrando pro carro ou não podendo mais pagar, num total de 25% de redução da demanda nos últimos 20 anos), a tendência é que se crie um circulo vicioso: aumentos de tarifa ocasionam redução de passageiras/os, que aumentam o número de usuários/as de carros, que aumentam os custos, que diminuem a renda, que demandam aumentos de tarifas (como demonstrado no APÊNDICE II). A proposta que emerge para solucionar imediatamente esta equação é a desoneração das empresas do setor de Transporte Coletivo Urbano. Esta desoneração pode reduzir entre 7% até 30% do valor das tarifas, se combinados todos os tributos municipais, nacionais e sobre os insumos. O estudo sugere, no entanto, que esta desoneração seja condicionada a contrapartidas dos prestadores do serviço. Aborda-se também que as políticas de benefícios ao uso do transporte coletivo (auxílio transporte, vale transporte) não tem sido eficientes para atender ao público que é mais vulnerável no transporte coletivo hoje: os trabalhadores e trabalhadoras informais que pertencem aos 30% mais pobres do país.

O terceiro capítulo faz um panorama de modelos de financiamento do TCU no Brasil e em outras cidades do Mundo, demonstrando a necessidade de diversificação de fontes para custear o serviço. Parte-se da premissa de que o transporte coletivo custeado somente por tarifas tende ao ciclo vicioso já mencionado acima. Mais que isso, a tarifa é hoje um fundo que não tem margem de aumento, dada o alto custo e a repercussão social dos protestos contra os aumentos de passagem. Dentre as alternativas, critica-se a idéia do subsídio cruzado, que é a diluição do preço de gratuidades ou mesmo distribuição geral do preço do transporte coletivo pelos usuários do serviço (p.e. meia passagem custeada na passagem geral e tarifa única). Discute-se a necessidade de que hajam investimentos públicos seja com impostos diretos para redução das tarifas ou fundos públicos destinados ao TCU. Apresentam-se os exemplos de algumas cidades europeias ou da américa do norte onde os subsídios ao serviço variam entre 40% e 60% de subsídios públicos, até 45% de outras receitas chegando ao caso de P
aris onde somente 20% do serviço é custeado pelas tarifas.

O quarto e último capítulo faz um apanhado em tabela das diferentes alternativas para diversificação dos gastos do sistema. Sugere-se diferentes fundos de custeamento do serviço que não sejam as tarifas, ressaltando-se que não há uma única alternativa a ser adotada, e que o apanhado serve como forma geral para adaptação às diferentes realidades municipais. A longa tabela apresenta diferentes fontes. Vamos relatá-la aqui por meio das origens dos recursos. Esta diversificação do financiamento poderia ser pela Sociedade (orçamento geral; fundos vinculados a outras políticas públicas); Usuários/as de carro (taxa sobre combustível, uso de via congestionada, estacionamento público e privado); Proprietários de automóvel (tributos sobre a produção, comercialização e propriedade de veículos); Setor Produtivo (vale transporte, tributo com base na folha de pagamento das empresas); Proprietários de imóveis favorecidos pelo TCU (IPTU); Receitas de comércio, serviços, publicidade (atividades geradoras de renda associadas a transporte).

As conclusões do estudo são de que há a necessidade de desoneração do TCU com contrapartidas; a necessidade de discutir e implementar novas fontes de financiamento; a urgência em melhora do planejamento e gestão do serviço; e os investimentos constantes em infraestrutura.

Um comentário geral sobre a nota é que ela tem o mérito de reconhecer a necessidade de diversificação das fontes de financiamento de transporte e, mais, de demonstrar a fragilidade do modelo tarifário em sua fórmula geral, impactos sociais e mesmo para a qualidade do serviço. A demonstração da fórmula esdrúxula de cálculo do preço da tarifa, baseada no IPḰ, abre a possibilidade de apresentarmos outra fórmula e outro indicador para o financiamento do sistema: seria o índice de circulação de veículo. Enquanto o IPK é fortemente vinculado ao preço da tarifa, o pagamento do transporte por veículo é mais vinculado aos subsídios públicos para o setor. Senti falta de alguma menção sobre o lucro com o serviço. A nota técnica estranhamente não trata do assunto, mas o modelo tarifário atualmente em vigor é claramente refém dos exorbitantes lucros dos empresários do setor de Transporte Coletivo Urbano. Estes, por meio de suas concessões (quase nunca regulares) para execução do serviço, exploram a altos preços os usuários e usuárias de TCU diariamente.

Esta ausência de discussão sobre o lucro empresarial não é a única. Há mais algumas, como a ausência de dados sobre as cidades que tem subsídios públicos para gratuidade (o passe livre estudantil no DF, p.e.). Esta ausência dificulta a discussão concreta de como funcionam e quais são as consequências práticas dos subsídios na operacionalização total do sistema de transporte coletivo. Há também ausências mais significativas ainda: a de dados sobre as cidades brasileiras, norte americanas e europeias que tem subsídio total no TCU. Esta ausência praticamente inibe a discussão sobre Tarifa Zero (TZ) no texto. Alias, a TZ não é sequer citada em uma linha que seja durante toda esta longa nota. No limite, a política de subsídios no financiamento do transporte que o texto aponta caminham rumo à Tarifa Zero. Porém o fato deste tema não ser discutido demonstra que o avanço da nota em discutir alternativas ainda não foi corajoso suficiente para tratar das alternativas que emergiram das ruas. E se foi pelo clamor das ruas que esta nota foi apresentada, porque não seguir com a discussão acerca das bandeiras que de lá emergiram?

A solução apresentada pelo estudo – a desoneração das empresas com garantia de contrapartidas – é frágil, estéril, de curta duração e ainda pode acirrar a crise de mobilidade em vigor no país. Não há qualquer mecanismo legal sério de garantir que a redução dos impostos resulte em melhora de qualidade ou redução tarifária relevante, inclusive porque os números do sistema de transporte coletivo são de domínio dos empresários do setor. Estes terão seu poder aumentado quanto menos encargos e obrigações tiverem com o estado e a sociedade – é a falácia liberal de que com menos impostos serão melhores os serviços. Além disso reduzir os impostos pode, no máximo, reduzir em 30% as tarifas de ônibus. Não pode, porém, mudar a fórmula tarifária. E se os insumos continuarão crescendo, os preços das passagens também continuarão (ainda mais agora que os empresários não pagarão nem mesmo um real de imposto). O caso é que esta redução emergencial nas tarifas seria a antessala para que daqui há poucos anos os aumentos sigam galopantemente até o limite de revoltas maiores que as atuais. A desoneração é uma política que, apresentando-se como milagrosa, é a ante-sala do desastre.

A verdade é que a Tarifa Zero é muito mais barata, possível e emergencial do que pode parecer à primeira vista. Espero sinceramente que os pesquisadores e pesquisadoras do IPEA e de outros órgãos competentes possam fazer, com simples projeções, os cálculos que fazemos há tanto tempo por parte dos movimentos sociais: de que com o subsídio total do transporte a qualidade necessariamente vai melhorar; de que o controle público e participação popular na gestão do TCU é uma forma de atacar a segregação urbana e garantir o caráter público do transporte coletivo; que precisamos emergencialmente de medidas para resolver a crise de mobilidade urbana do Brasil; que esta crise tem como uma de suas principais causas o fato do TCU ser tratado como mercadoria e não como direito. Enfim, que a Tarifa Zero não é uma ousadia transgressora, mas o óbvio que bate à porta.

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