Merenda, não. Refeição

Cerca de 36,4 milhões de alunos são atendidos diariamente pelo Programa Nacional de Alimentação Escolar, que alterou padrões de nutrição. Ao longo das últimas décadas, a merenda — ou, como prefere o Ministério da Educação, alimentação escolar — tem passado por transformações.

Reportagem: Camila Turriani e Patrícia Fortunato


Para o MEC, o que houve foi uma evolução, ainda em curso, do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), originalmente concebido nos anos 40. A intenção era suprir as carências nutricionais de parte da população brasileira. Mas a idéia não avançou, já que "interesses políticos e escassez financeira" impediram a concretização do plano, observa Albaneide Peixinho, coordenadora do PNAE, vinculado ao Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE).

Foi na década de 70, segundo Albaneide, que se chegou à conclusão de que a merenda não

devia simplesmente "matar" a fome, mas suprir as necessidades fisiológicas do aluno. A partir daí, merenda (que significa refeição ligeira, lanche) virou alimentação escolar.  "O termo ‘merenda escolar’ tem uma conotação pejorativa, de ‘comida de pobre’, de alimentação por caridade", afirma a nutricionista Joana P. D’Arc Mura, que já presidiu a Associação Brasileira de Nutrição (Asbran). "Houve uma evolução do conceito e, hoje, a alimentação escolar tem outro significado."


 Camila Turriani
 Conceito de lanche na escola deu lugar ao de refeição: além de  
"matar" a fome, alimentos devem suprir necessidades fisiológicas

Joana lembra já ter havido época em que os alimentos destinados à merenda eram excedente de produção de outros países, que enviavam a comida para o Brasil por caridade. Houve ainda, segundo a nutricionista, época em que as intenções foram boas, mas a realização desastrosa. A tentativa de introduzir concentrados de soja — que, na aparência, lembravam ração para cachorro anunciada na TV naquele momento — foi frustrante. A experiência se repetiu com suco em pó de tomate, de gosto muito ácido e prontamente rejeitado pelos alunos.

Atualmente, o programa de alimentação escolar faz parte do tripé do Fome Zero e, segundo o MEC, evolui. Exemplo disso seria a inclusão de creches no programa, bem como a equiparação dos recursos destinados à alimentação escolar, hoje em R$ 0,18 diários por criança. O repasse diário para comunidades índigenas e quilombolas é de R$ 0,34, o que também é considerado uma conquista. Além disso, o Ministério afirma que o trabalho integrado de órgãos de controle interno e externo, como a Controladoria Geral da União (CGU) e o Ministério Público (MP), também colaboram com o aperfeiçoamento do PNAE.

Na lista dos desafios a vencer, o MEC cita a extensão do programa aos alunos do ensino médio, a simplificação da legislação e o aumento de capacitação dos Conselhos de Alimentação Escolar (CAEs). Formados por representantes da sociedade (pais, alunos, professores e membros do Executivo e do Legislativo), os CAEs auxiliam as Secretarias de Educação (entidades executoras do PNAE) e são responsáveis pela aprovação das contas de municípios e Estados. Também são atribuições dos CAEs a fiscalização e execução do programa de alimentação, a contratação de nutricionistas e a composição dos cardápios. O MEC tem realizado treinamento de CAEs em diversas regiões e acredita ser um desafio capacitar gestores para cobrir 5.650 municípios brasileiros.

Um dos desafios relacionados à alimentação escolar, avalia Joana, é fazer com que as crianças aprendam a comer alimentos saudáveis. "O fast-food tem um apelo muito grande e razões até antropológicas, como a saída da mãe para o trabalho", afirma. Segundo ela, as mães acabam permitindo que os filhos comam lanches, salgadinhos e outras guloseimas que têm forte apelo na mídia como forma de compensação pela ausência do lar. O atual papel da mulher na sociedade faz ainda com que as atribuições da escola, no que diz respeito também à alimentação dos alunos, só aumentem. "A escola é o ambiente propício para a aplicação de programas de educação alimentar e saúde", observa. "Os alunos são carentes de informação e o professor ainda é o exemplo a ser seguido."

Joana diz que não há uma receita-modelo a ser seguida pelas escolas, mas defende que a quantidade de frutas e legumes servidas para os alunos aumente e que grãos refinados sejam substituídos por outros alimentos. Ela também questiona o tempo que as crianças têm para se alimentar enquanto estão em horário de aula, que deveria ser maior, e afirma que só "uma coalizão de professores e profissionais de saúde, que ajudem os alunos a entender o conceito de saudabilidade dos alimentos", fará com que a conscientização das crianças cresça e que a alimentação melhore. Ela reconhece que a tarefa é difícil e que, para os alunos, alimentos como batata frita e catchup são verdadeiros "prêmios", mas que a cumplicidade entre pais, professores e nutricionistas pode mudar o quadro.


 Divulgação

 Albaneide Peixinho, coordenadora do
PNAE: concebido nos anos 40,
programa demorou a avançar

Os desafios do MEC e dos profissionais de nutrição são também os desafios da indústria alimentícia, que encontrou na alimentação escolar um filão a ser explorado, ou um "nicho de mercado", no jargão empresarial. Antonio Guimarães, diretor-superintendente da Associação Brasileira das Empresas de Refeições Coletivas (ABERC), afirma que o setor prepara 50 milhões de refeições diárias a crianças em idade escolar. Para 2005, a associação prevê faturamento total de R$ 6,9 bilhões (dos quais 4%, ou R$ 276 milhões, relacionados ao segmento escolar).

Para 2006, a estimativa é de que 8% do volume de refeições servidas no país por empresas privadas seja destinado às escolas. A ABERC avalia em 23 milhões o potencial de refeições diárias para empregados de empresas e em 17 milhões nas escolas. O grande número de crianças em idade escolar e o orçamento do MEC para a tarefa são indicadores de que a alimentação escolar é, sim, um mercado promissor. Desde 2003, os investimentos do PNAE alcançaram R$ 5,9 bilhões. Para 2005, o orçamento do MEC para alimentação escolar é de R$ 1,265 bilhão. O orçamento para alimentação está livre do contingencionamento de verbas do governo, ou seja, não fica engessado para engordar o superávit primário (economia feita para pagar juros da dívida
brasileira) (leia reportagem "Compasso de Espera", sobre o Fundo de Universalização do Sistema de Telecomunicações).

A oportunidade de negócios faz com que as empresas do setor mirem na necessidade de melhora dos hábitos alimentares dos alunos. Para Guimarães, quanto mais as crianças forem vistas como cidadãs, e receberem alimentação adequada, melhor será o desenvolvimento escolar. E criança melhor alimentada também reverte em melhores resultados para as indústrias, tanto que os maus hábitos alimentares são citados como um obstáculo à comercialização de refeições escolares.

"É preciso criar hábitos alimentares saudáveis nas crianças, fazer com que elas aceitem um cardápio rico em legumes, verduras e frutas, e que absorvam a quantidade e a qualidade dos nutrientes necessários para o seu desenvolvimento", defende Ederson Christian Alves de Oliveira, diretor comercial da Real Food. A empresa, com sede em Santo André (SP) e filiais em outros estados, fornece, diariamente, 5 mil desjejuns, 14 mil almoços e 6 mil lanches a crianças em idade escolar. Oliveira explica que os cardápios são balanceados e que, em maioria, são compostos de produtos "in natura".

Outra empresa do setor, a ERJ, afirma servir, diariamente, 70 mil merendas. Ela atua em municípios do Estado de São Paulo e atende cerca de 100 escolas, que preparam a merenda com os produtos fornecidos pela empresa. Os cardápios são elaborados 30 dias antes do envio dos produtos e são combinados entre as prefeituras e a empresa, que conta com equipe de nutricionistas e merendeiras.

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