Visita a Dom Pedro Casaldáliga, um lutador do povo

Acompanhe, a seguir, o relato da visita que João Pedro Stédile, militante do Movimento dos Sem Terra, fez ao bispo emérito da Prelazia de São Félix do Araguaia (MT), Dom Pedro Casaldáliga, agora no final do ano. Entre as tantas lições, Pedro Stédile aprendeu uma com o povo de São Félix: somente o povo organizado pode conquistar mudanças e mover montanhas.

Estimados compas,
de nosso querido Movimento,
 
Estou aproveitando as ultimas horas desse longo e dificil 2005, para lhes contar, que estive nesses dias visitando nosso querido Dom Pedro Casaldáliga.
Fui a Sao Felix do Araguaia. Pedro, como quer que lhe chamem, havia convidado-me muitas vezes, desde os tempos de Comissão Pastoral da Terra (CPT), e mais recentemente para participar de eventos com professores da Prelazia. Infelizmente nunca havia podido, por outros compromissos assumidos. Mas sempre tive muita vontade de ir lá vistá-lo e me sentia em dívida. Então, aproveitei esses dias mais calmos de final de ano, para ir visitar nosso querido Pedro, que tantas lições nos tem dado.
 
O meio..

Pra começar, não tinha a mínima idéia de como seria a cidade de Sao Félix do Araguaia (MT). Pedro a conhece como sua casa. Chegou lá no final da década de 60, depois de 7 dias de caminhão. Nem municipio era. Agora, ainda é uma pequena cidade de não mais de sete mil habitantes, às margens do Rio Araguaia.  Está no norte do Mato Grosso, no fim da linha.  Do outro lado, a ilha do Bananal habitada por 16 povos indigenas, estado de Tocantins.  Para chegar lá de onibus, somente depois de 26 horas de estrada, saindo de Goiania, ou num voo proibitivo de caro, que sai duas vezes por semana de Brasilia.
 
A Prelazia é enorme do ponto de vista geográfico, quase do tamanho de Sergipe.  Tem 15 municipios, pouca população e muitos latifundios. A população se divide entre os originários povos indigenas que sempre habitaram as margens dos piscosos rios da região, os caboclos ribeirinhos, que nas últimas  décadas vinham do nordeste em busca de um lugar ao sol, sossegado. Na década de 70, chegou o capital para se apoderar de suas terras e formar grandes latifúndios, com fazendas de até 300 mil hectares. Seus proprietários não vieram. Ficaram em Goiânia, Cuiabá e São paulo. Mas mandaram a opressão, o capataz, a violência, os pistoleiros e o trabalho escravo, que ainda, surpreendemente existem na região.
E nas últimas três décadas vieram também muitos migrantes sulistas, gaúchos, paranaenses, sonhando com terra para trabalhar. Esse é o mundo de Pedro.   
 
Nesse mundão perdido, no mapa do Brasil, e em meio a tantas injustiças, Pedro sempre esteve ao lado dos pobres: índios, caboclos, peões, sem-terras, trabalhadores escravizados, migrantes pobres do sul. E intransigentemente contra o latifúndio, a opressão e o capitalista que veio do sul. Ele, e seus colegas missionários, pagaram caro. Nos tempos impunes da ditadura, muitos pagaram com a própria vida essa opção:  Padre Francisco Jentel,  Padre Joao Bosco (assassinado por um policial que o confundiu com Pedro). Outros não aguentaram tantas pressões e partiram. Mas não foi em vão. São Felix não se transformou numa imensa fazenda. Lá houve resistência e há, agora, povo organizado e consciente.
 
Sempre defendeu que as injustiças somente se combatem com a organizaçao do próprio povo, e que o papel da igreja era e deve ser um serviço permanente para a organização do povo. Assim fez em sua Prelazia, na igreja de São Felix, e assim fez com sua influência profética ao ajudar organizar o Conselho Indigenista Missionario (CIMI) e a comissão pastoral da terra. Ambos, como ele mesmo gosta de reafirmar, para ser apenas igreja a serviço da organização dos pobres.
 
As mudanças

Pedro se dedicou incansavelmente a esse trabalho conscientizador, organizador, como um verdadeiro pastor no meio e junto com seu povo, desde 1971. Em 2005, vencido pela idade, ao completar 75 anos, pediu demissão do cargo de bispo, como manda o direito canÔônico. 
Houve tensão na igreja de São Félix e entre seus amigos e aliados de todo Brasil. A poderosa Roma não ouvia ninguém. Como todos os impérios, tem muro nos ouvidos. Sabe-se que chegaram a sondar quatro bispos para irem morar por lá. Mas para morar no meio povo e respeitar sua caminhada, é preciso ser um bispo especial. Um dos possíveis consultados, chegou a exigir que antes Pedro, mudasse de residência e saísse da prelazia.  Uma afronta, logo repelida por toda comunidade.
Finalmente, foi designado outro Bispo, Dom Leonardo Steiner, franciscano, que soube compreender a caminhada do povo de São Félix, se integrou a ela, e está residindo na mesma casa com Pedro e seus colegas de missão.
 
 
 
O descanso..do incansável
 
Fui a São Félix visitar um mestre.  Um profeta. Um poeta. Um amigo. Um lutador do povo brasileiro. Sabia que o mal de parkison o estava maltratando e o impedia de realizar viagens. Sabia de suas tonturas e dores de cabeça, que o maltratam tanto. Mas nada disso o está impedindo de seguir nos dando lições de vida. Já não pode viajar. E mais uma vez deu testemunho de sua coerencia com o povo. Poderia ter escolhido algum convento, na sua Catalunha, ou em alguma capital brasileira, mais próximo de atenções médicas e de elogios ao seu passado. Pois permaneceu na mesma casa, com os seus colegas, com os mesmos vizinhos, com as mesmas conversas, com as mesmas visitas quotidianas, enfim, com o mesmo povo, que ama tanto. E a quem dedicou toda sua vida.  Então porque sair agora, se ele é de São Félix ?
 
Vi, na visita, que segue com suas reflexões proféticas, analisando com clareza invejável os caminhos da igreja, os caminhos de nosso povo.  Continua acreditando mais do que nunca, de que somente o povo organizado pode conquistar mudanças.  Continuam acreditando mais do que nunca de que somente a mobilização do povo pode e deve mover montanhas. As montanhas da exploração, das injustiças, da dependência externa, do capital estrangeiro, da dívida externa, do latifúndio, dos bancos, dos juros…
 
Segue lutando e denunciando que a raiz de todos os males na terra está na existência do latifúndio. "Nada pode justificar o latifúndio. Nós devemos lutar sempre até extirpar o latifúndio de nossa sociedade", prega.
 
Tem a coragem, com toda sua moral de bispo, pastor e teólogo da libertação de anunciar a todos os quatro ventos de que "o capitalismo é iníquo, injusto, desumano. E portanto, anti-cristão."
 
E com tanta sabedoria, segue encontrando tempo para  colocar seus pensamentos em versos e poemas.  Grande poeta que é. Mesmo que os dedos nao lhe ajudem a digitar no computador, mas a mente sana, não lhe falha, na hora de colocar em versos, verdades e sentimentos.

Me deu de presente, com muita paixão, um livreto recém publicado pelas edições loyola, que traz a reprodução de todas as pinturas muralistas que estimulou fossem feitas, em cada uma das igrejas da prelazia.  E para cada pintura, lá está um poema. Revelador. Recomendo a todos buscarem  nas livrarias. (Murais da Libertação – prelazia de São Félix do Araguaia)
 
Conheci de longe Dom Pedro Casaldáliga, quando ainda nos tempos da ditadura, multiplicávamos em mimeógrafo e distibuíamos clandestinamente entre os estudantes da PUC do Rio Grande um poema de Dom Pedro, homenageando ao Che. Ficava imaginando naqueles tempos.. como pode um bispo fazer uma poema de homenagem ao Che? Ficava comparando-o, na minha imaginação, como se fosse aqueles comandantes estereotipados pela esquerda, vestido de verde olivo, alto, forte, discursando para  guerrilheiros.
 
Alguns anos mais tarde, o conheci pesso
almente, atraves de um amigo comum, Irmão Cecchin, quando nos veio visitar na grande Porto Alegre, e foi pregar, humildemente numa ocupação urbana. De lá, fomos para nosso acampamento na encruzilhada Natalino, que havia resistido e derrotado o famigerado  Coronel Curió, que também atormentava o trabalho pastoral na região amazônica de Pedro. E lá no acampamento, ergueu sua voz, e disso nunca me esqueci, pôs a mão sobre o evangelho, no meio da celebração e disse: "meus irmãos! Em nome de Jesus de Nazaré, em nome do Deus libertador, eu, bispo de São Félix, lhes asseguro e prometo, que se vos manteis unidos, conquistarão a terra, que sonhais, e que é de todos e todas !"
 
Foi a têmpera que nos faltava, depois de quase dois anos acampados. O Bispo nos assegurou em nome de Deus, que se nos mantivéssemos organizados, conquistariamos a terra.
 
E ele tinha razão. Todos os que se mantiveram acampados na encruzilhada, conquistaram  terra. 
E sempre repeti isso a todas as famílias acampadas, ao longo desses 21 anos de existência do Movimento sem terra, sobretudo quando bate o desânimo entre aqueles que sofrem mais, lutando debaixo de lonas pretas..ao longo dos latifúndios e das estradas brasileiras.
 
Nesses anos todos de luta pela reforma agrária, Pedro se manteve sempre com uma coerência total ao lado dos sem-terra, dos posseiros, dos povos índigenas. Sempre com sua palavra de ânimo. Em anos passados, estando em São Paulo e assistindo à campanha difamatória que a grande imprensa fazia contra o nosso movimento, Pedro não titubeou e de público na coletiva de imprensa disse:"Bendito seja, o MST! Se ele não existisse, teríamos que criá-lo, para que a missão de justiça se cumpra."
 
 
Agora, fui lá dar um abraço a esse mestre. Fui lá visitar um poeta, um pai, um irmão, um profeta. 
Fui lá visitar um grande companheiro. Que nos deu tantas lições de vida. Levei a ele um abraço, não apenas pessoal.  Levei o carinho de toda militância do MST.  Quis levar a gratidão de todos os sem-terra que têm consciência de sua luta e resistem debaixo das lonas pretas, por esse Brasil afora…
 
Pedro não precisa mais viajar. Nós viajaremos por ele.
Pedro não precisa mais pregar para os pobres.  Suas lições de vida  são o exemplo, para todos militantes sociais do povo brasileiro.
 
Voltei de São Félix com as baterias recarregadas, de animo, de esperança, de perserverança. Voltei de São Félix de alma lavada e abençoada por nosso mestre e exemplo. Prometi a ele, que nossa militância jamais se esqueceria de suas lições de vida.
 
Por isso, quis compartilhar com todos vocês essa minha visita
 
Um grande abraço
Joao Pedro

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