Direitos humanos e desarticulação social

Fábio Konder Comparato

Fábio Comparato

"Na história dos direitos humanos, a criação de defesas institucionais da dignidade das classes e dos povos oprimidos nunca foi uma dádiva do alto, mas surgiu sempre em razão da sua capacidade de auto-organização." A partir desta constatação histórica, o prof. Fábio Konder Comparato nos trás a reflexão do que está acontecendo no mundo do trabalho, com a globalização e a liberalização dos mercados, os trabalhadores têm sido vítimas de um processo de desarticulação e de pauperização e levados a quebrar a solidariedade interna da classe trabalhadora.

FÁBIO KONDER COMPARATO

A tradicional passividade ou completa resignação do nosso povo diante das injustiças sociais é freqüentemente assinalada em estudos acadêmicos ou discussões políticas. Raramente, porém, se faz a ligação desse comportamento omissivo com a ação concertada dos grupos dirigentes.

Na história dos direitos humanos, a criação de defesas institucionais da dignidade das classes e dos povos oprimidos nunca foi uma dádiva do alto, mas surgiu sempre em razão da sua capacidade de auto-organização.

A melhor ilustração dessa verdade nos é dada no campo do direito do trabalho. Na generalidade dos países, o reconhecimento dos direitos fundamentais dos trabalhadores, assalariados ou autônomos, não surgiu de cima para baixo, por obra e graça dos homens no poder, mas somente passou a vigorar a partir do momento em que a classe trabalhadora, organizada em sindicatos ou associações profissionais, adquiriu força bastante para exigir dos patrões e proprietários um mínimo respeito à sua dignidade.

Teríamos sido exceção nessa história?

O exemplo das normas trabalhistas baixadas por sucessivos decretos de Getúlio Vargas a partir de 1930 costuma fundamentar a resposta afirmativa.

Sucede que esse modelo autocrático perdeu claramente vigor no final dos anos 70, com a ascensão de um novo sindicalismo não controlado pelo Estado, e nunca valeu para os trabalhadores do campo, desde sempre abandonados ao deus-dará. Foi somente a partir dos anos 80 que o MST veio perturbar a sinistra quietude do campo e demonstrar, por ações, e não com pedidos de audiência às autoridades, que o direito ao trabalho, declarado no artigo sexto da Constituição Federal, não deve jamais subordinar-se ao direito de propriedade da terra agrícola.

A triste realidade, porém, é que assistimos no mundo do trabalho urbano, nos últimos decênios, a uma nítida involução, refletida nas estatísticas macroeconômicas. A participação do rendimento do trabalho assalariado na repartição da renda nacional decresceu substancialmente: era de 50% no início dos anos 80 e baixou agora para 36%. Quanto a isso, não somos exceção no panorama mundial. Nos países do G7, no mesmo período, a parte dos salários na repartição da renda nacional baixou de 70% para 60%, enquanto a parcela dos lucros cresceu de 10% a 14%.

Para a produção desse funesto resultado não contribuiu apenas a vaga mundial de desemprego, levantada pela globalização financeira dos últimos 40 anos. É preciso não esquecer que, no campo industrial, a principal causa da desarticulação dos trabalhadores, no mundo todo, foi o enfraquecimento dos sindicatos por efeito da aplicação da política dita de “flexibilização” das relações de trabalho.

Ela já foi comparada, pela sua capacidade de sedução perversa, ao famoso golpe do cavalo de Tróia. De um lado, sob a bandeira de uma “humanização do trabalho assalariado”, as empresas passaram a oferecer novas modalidades contratuais, com critérios diferenciados de fixação de horário e remuneração dos empregados (criação da figura do “operário-padrão”, oferta de prêmios e “stock options” em função da “produtividade” individual).

Em 1980, tínhamos apenas cinco espécies de contratos de trabalho, ao passo que, hoje, contamos com 18 modalidades. De outro lado, os patrões, subitamente transformados em pais protetores, se dispuseram a se entender diretamente com os empregados, para ouvir suas queixas e sugestões, persuadindo-os assim da inutilidade de consultar o sindicato.

Com isso, como era fácil prever, se quebrou a solidariedade interna da classe trabalhadora (os empregados tornaram-se concorrentes uns dos outros na mesma empresa) e os sindicatos perderam sua natural representatividade.

Convém lembrar, aliás, que a nossa experiência de desarticulação dos trabalhadores é bem antiga, pois deita raízes na escravidão. As sucessivas levas de africanos, amontoados para transporte nos tumbeiros, eram sempre compostas de indivíduos de múltiplas origens tribais, incapazes de se comunicar verbalmente pelo fato de falarem línguas radicalmente diferentes.

Aqui despejados, os escravos eram repartidos nos domínios rurais segundo o mesmo critério da mistura tribal. A tal ponto que, como bem assinalou Darcy Ribeiro, os africanos foram obrigados, para poderem se comunicar entre si, a aprender a língua que lhes era constantemente gritada pelos feitores. A difusão da “última flor do Lácio” em todo o território nacional foi, em grande parte, obra dos nossos escravos.

Uma análise semelhante pode ser feita no campo político, desde o velho (e persistente) coronelismo até o atual niilismo partidário, culminando com a massificação do povo pela ação concordante dos meios de comunicação social, oligopolizados pelos grupos empresariais.

Em qualquer hipótese, é francamente odioso transformar o povo de vítima em responsável por omissão de sua própria desgraça.


Fábio Konder Comparato, 69, advogado, doutor pela Universidade de Paris (França) e doutor honoris causa pela Universidade de Coimbra (Portugal), é professor titular da Faculdade de Direito da USP e membro honorário e vitalício do Conselho Federal da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil). É autor, entre outras obras, de “A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos”.

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