A Mosca Azul na obra de frei Betto

Frei BettoA obra de escritor de frei Betto se situa numa confluência de várias práticas da Palavra: do jornalista, do historiador, do educador popular, do analista político, do cronista, do pensador, do assessor de movimentos populares, do teólogo da Libertação, do ficcionista, do místico. Estas práticas podem ser resumidas em duas vertentes essenciais: ensaísmo e ficção – às vezes imbricadas entre si, em alguns de seus livros de corte ensaístico, como é o caso do paradigmático Batismo de Sangue que é História e Memória, mas onde é inequívoca uma vontade narrativa.

Adélia Bezerra de Meneses1 e Thomaz Ferreira Jensen2

A obra de escritor de frei Betto se situa numa confluência de várias práticas da Palavra: do jornalista, do historiador, do educador popular, do analista político, do cronista, do pensador, do assessor de movimentos populares, do teólogo da Libertação, do ficcionista, do místico. Estas práticas podem ser resumidas em duas vertentes essenciais: ensaísmo e ficção – às vezes imbricadas entre si, em alguns de seus livros de corte ensaístico, como é o caso do paradigmático Batismo de Sangue que é História e Memória, mas onde é inequívoca uma vontade narrativa.

Esse frade dominicano (e não “padre”, como ele faz questão de frisar, e portanto, leigo), para quem o Verbo tem uma importância vital, é porta-voz de uma Palavra que liberta. É autor de uma obra multifacetada que se desdobra por mais de cinqüenta títulos, e assim como sua produção de ficcionista comporta romance, novela, biografia romanceada, conto, sua obra ensaística se modula em uns tantos sub-gêneros, inextricavelmente imbricados entre si. Eles vão da Historiografia mesclada de Memória/testemunho (caso também do excelente Paraíso Perdido – nos bastidores do Socialismo, esgotado há anos e que merece uma nova edição pela atualidade de suas reflexões, ou de Fidel e a Religião, que também contém elementos de matéria jornalística, tecido que é de entrevistas) à epistolografia (Cartas da Prisão), passando pela Crônica (como Fome de pão e de beleza), por obras de cunho doutrinal e didático (como o Catecismo Popular) e pela Biografia (Alfabetto). Merecidamente, em 1985 ganhou o Prêmio Juca Pato pelo conjunto de sua obra. E o conjunto de suas obras traça a biografia de uma geração.

E é efetivamente na sua produção de ensaísta que ele se revela em sua plena medida, e onde exerce um papel fundamental, na confluência de “pensamento e militância” articulados. Pois seus livros de ensaísmo militante constituem no Brasil algo de absolutamente insubstituível – não de um homem de gabinete, espectador crítico, mas de um agente histórico, por vezes protagonista. Frei Betto é, para usarmos um termo de Gramsci, um intelectual orgânico e visceralmente ligado às questões do nosso tempo, do Brasil, da América Latina e do mundo. Nos seus ensaios, ele amalgama o jornalista que sempre foi, o pensador, o memorialista, o divulgador de doutrina, o teórico da educação popular, o analista lúcido das questões sociais e políticas.

E como escritor, ele encarna um exemplo vivo da função da Palavra de “organizar a experiência” – uma função libertadora. Pois uma das funções da Literatura é essa: transformar em palavra as experiências, vivências, emoções, percepções confusas. Essa possibilidade de verbalizar, de nomear situações existenciais que de outra maneira ficariam inarticuladas, tem um valor catártico, uma eficácia ordenadora – no nível das idéias, mas também no das emoções, contribuindo para a nossa compreensão do mundo e de nós próprios – e impulsionando para a ação. Com Cartas de Prisão, ou com Batismo de Sangue, por exemplo, frei Betto não apenas organizou suas idéias, mas ajudou a toda sua geração a nomear aquela experiência avassaladora e desraigadora da ditadura militar, que se vivia nos anos 70. Esse mesmo esforço de reflexão aparece em O Paraíso Perdido – em que “elabora” (para usarmos um termo da Psicanálise!) a enorme decepção pela derrocada do Socialismo no Leste Europeu.

Por isso, é com grande expectativa que se aguardou a publicação deste A Mosca Azul – reflexões sobre o poder, num tempo de desencanto que se seguiu à euforia da vitória de um operário nordestino para a Presidência da República, quando se pensava que o Brasil poderia aproximar-se de uma utopia socialista. Não por acaso, frei Betto inicia este seu novo livro com a frase: “Ainda bem que meu pai partiu antes”.

Caso raro, frei Betto consegue aliar essa intensa atividade de intelectual que tem a Palavra como matéria-prima, a uma práxis revolucionária e libertadora, como militante político, conferencista e assessor de movimentos populares. Nos dois primeiros anos do governo Lula, essa postura o levou a assessorar o Presidente da República a iniciar um programa de mobilização social no âmbito das políticas de combate à fome.

E é respaldado por toda essa bagagem que frei Betto escreveu este livro. Entre suas qualidades, a obra faz um bom apanhado do último quarto de século da História do Brasil, da ótica de um de seus lúcidos e engajados atores. Pois o que o frei Betto fez foi – além de uma reflexão teórica sobre o poder, que o título anuncia – historiar criticamente a formação do PT, a ascensão de Lula, as propostas de políticas públicas, a Utopia; e por outro lado, ele expressa condenação ao imobilismo do governo (e suas causas: tanto pessoais, de seu líder, quanto sistêmicas), condenação à perda do projeto socialista, à bomba do “mensalão” – que abriu para a gravíssima derrocada ética da cúpula dirigente petista (bem como de outros partidos da coligação).

Nesse livro, frei Betto se impôs a rude e ousada tarefa de – mantendo-se fiel à amizade de mais de 30 anos com Lula – fazer as esperadas críticas. Algumas delas, de uma rascante sobriedade: “Lula teve, nos primeiros meses do seu governo, poder suficiente para promover a Reforma Agrária e a auditoria da dívida pública. Não soube aproveitá-lo” (p. 89). Ou então, falando da positiva atuação de Lula como líder sindical, em que comprovou que seria possível “inserir-se numa estrutura viciada sem se deixar cooptar por ela”, mostra que não conseguiu o mesmo resultado no governo: “A máquina do Estado, azeitada pelos interesses das elites, refreou-lhe idéias e aspirações”. Mas a reflexão mais aguda é feita com o suporte que lhe fornece Maquiavel, para quem os grandes, quando não conseguem resistir ao povo, tratariam de encontrar no meio dele um “ascendente”, constituindo-o “príncipe, a fim de poderem, à sombra de sua autoridade, continuar a satisfazer seus desejos ambiciosos”. E a crítica, desolada, vem na forma de uma angustiada pergunta: “Teria sido Lula esse ‘ascendente’ na ótica da parcela da elite brasileira que lhe deu apoio?” (p. 185). Raramente poder-se-ia pensar num dilaceramento maior: essa acuidade crítica não fez o autor retirar seu apoio ao líder petista. E é nessa postura, tendida ao extremo, que há de ser encarado esse livro.

Mas, como não poderia deixar de ser, ao tratar
do caso brasileiro – um país subdesenvolvido e dependente – frei Betto inescapavelmente faz uma análise do “mundo unipolar” em que vivemos, sob hegemonia dos EUA; da “globocolonização” (como prefere se referir à mundialização do capital); do neoliberalismo; da terceirização, que ele vê conduzir a um tipo ainda mais cruel de alienação no mundo do trabalhador. Neste livro, frei Betto tem o mérito de afirmar diretamente a realidade: o neoliberalismo é um conjunto de políticas liberalizantes fracassadas e a ruptura com o modelo econômico concebido no governo FHC e herdado passivamente pelo governo Lula implicaria alterações profundas na forma de compreender o que significa o papel do Estado para manter ativa a economia nacional. Em primeiro lugar, trata-se de reconhecer o decisivo papel do gasto público na orientação e sustentação de investimentos nas áreas sociais e de infra-estrutura. Isso significa jamais manter um nível de recurso da magnitude do atual superávit (cerca de 6% do PIB ou 30% de toda receita federal) confiscado pelo Tesouro e retirado da esfera de gastos do Estado, destinando esta vultosa soma ao estéril – do ponto de vista do atendimento das necessidades do conjunto da população – pagamento de juros de dívida, beneficiando uma minoria de rentistas no Brasil e no estrangeiro.

Teria sido mais fácil ao amigo de Lula e companheiro de tantas lutas, ter apenas deixado o governo, abandonando seu posto de assessor especial do Presidente da República, e ter esperado que seu gesto falasse por si. Mas Frei Betto é um ser da Palavra que nomeia o vivido. Daí a proposta de analisar a política brasileira dos últimos anos, desde a formação do PT, sob o viés, exatamente, de uma reflexão sobre o poder – a Mosca Azul do poema de Machado de Assis, que lhe deu mote e título. Um livro corajoso em que, por detrás da sóbria contenção de suas reflexões, lateja um dilaceramento entre, de um lado, manter a fidelidade à amizade tecida das muitas lutas vividas em comunhão e das utopias partilhadas, e não se esquivar de criticar, de outro.

Daí, ser A Mosca Azul um livro que ao mesmo tempo oferece menos e mais do que aquilo a que se propõe. Menos porque, nas críticas ao Partido dos Trabalhadores o autor não informa além daquilo que já se sabia pelos jornais, e a respeito da ferida ética do PT não destrincha fatos – sobretudo levando-se em conta a sua proximidade com as esferas do poder (ou do governo, valha a distinção que ele se esmera em traçar). Mais porque, com fôlego teórico, nos conduz uma análise do poder – respaldada por pensadores tais como Aristóteles, Maquiavel, Proudhon, Michels, Bobbio, Hannah Arendt, Hegel, Hobbes – tendo como corpus, exatamente, o caso pulsante da política brasileira.

Se formos resumir ao sumo do essencial os tópicos básicos e verdadeiramente fundantes de seu pensamento ao longo do livro, eles seriam: a impossibilidade de liberdade política sem democracia econômica e a importância do diálogo constante com os movimentos populares como princípio e sustentação de qualquer verdadeiro processo de mudança social. E aí se enraíza a crítica mais irremissível que opõe a Lula: ter-se afastado dos movimentos sociais. Mas há ainda crítica à sua política econômica, continuidade do fracassado modelo neoliberal. Frei Betto critica igualmente a ausência de reformas estruturais no governo Lula, especialmente a Reforma Agrária, e manifesta certo descontentamento com o teor das declarações públicas do presidente, como a de que nunca teria sido de esquerda.

Ao mesmo tempo, em clave de apoio, frei Betto relativiza certas críticas pelo reconhecimento do formidável peso da máquina governamental, e seu sistema paralisante, agravado pelo manietamento por conta das coligações a que se obrigara ainda antes das eleições. Mas frei Betto desculpa Lula, dando razão à sua declaração de ter-se sentido “traído” e elogia a presteza com que demitiu o ministro-chefe da Casa Civil, envolvido nas denúncias do “mensalão”.

Frei Betto conjuga com grande coerência – e com tamanha eficácia – os dois termos que muitos gostariam de ver separados: Fé e Política. Ele leva a sério a questão de amar com todo o coração, toda alma, mas também com toda inteligência. Amor não é só questão de boa vontade, nem é gostar somente de pessoas, mas de se instrumentalizar para conhecer os problemas no nível da política dos povos, e informar-se, buscar competência, e ajudar a apontar as melhores vias de solução. Amor inteligente, em dimensão continental e mundial.

Como dissemos, a obra de frei Betto traça a biografia de uma geração. E ajuda a nós todos a nos situarmos e a organizarmos nossa experiência, abrigando também um poderoso combustível para a Utopia, de que andamos tão desesperadamente carecidos. Utopia que, como alerta Paulo Freire em Conscientização: teoria e prática da libertação, não é o irrealizável ou o idealismo, mas a urgente “dialetização dos atos de denunciar e anunciar, o ato de denunciar a estrutura desumanizante e anunciar a estrutura humanizante. Por esta razão a utopia é também um compromisso histórico”.


1 Adélia Bezerra de Meneses, doutorada em Letras pela USP, lecionou Literatura Brasileira na Technische Universität de Berlim e Teoria Literária na USP e UNICAMP, onde é Professora Colaboradora; atualmente vinculada à Pós-graduação dessas duas universidades. Autora de, entre outros: Desenho Mágico. Poesia e Política em Chico Buarque (Prêmio Jabuti 1982) e Do Poder da Palavra: Ensaios de Literatura e Psicanálise.

2 Thomaz Ferreira Jensen é economista, cursando o mestrado em Desenvolvimento Econômico no Instituto de Economia da UNICAMP.

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