Documentário defende a atualidade do diagnóstico de Celso Furtado para o Brasil

Antonio Biondi – Carta Maior

"O Longo Amanhecer", de José Mariani, conta a história de um dos maiores economistas do século 20, desde sua ida à Europa em plena Segunda Guerra Mundial, passando pela criação da Sudene, o exílio após o golpe militar de 1964 e os governos de FHC e Lula.

O crescimento no Brasil sempre foi essencialmente gerador de desigualdade e concentração de renda. Para mudar esse quadro, é necessário estudar o subdesenvolvimento e as estruturas dominadas pelas elites que o perpetuam, além de o Estado ter papel fundamental para que haja crescimento com distribuição de poder e de renda. Essas questões essenciais do pensamento de Celso Furtado, ainda a serem definitivamente encaradas no Brasil, são reafirmadas pelo documentário "O Longo Amanhecer", de José Mariani, que teve sua pré-estréia na última terça-feira (25) no Rio de Janeiro.

Além de render homenagem a um dos maiores economistas do mundo no último século, falecido no final de 2004, o filme é uma aula da história do Brasil na segunda metade do século 20. A narração, baseada sobretudo em depoimentos de Celso Furtado, além de outros pensadores do Brasil como Maria da Conceição Tavares e Francisco de Oliveira, se dá sempre sobre o prisma do desenvolvimento e da necessidade de reformas estruturais no país, que colocassem as desigualdades e a pobreza como questões centrais a serem resolvidas.

Em um dos momentos centrais do documentário, Furtado afirma que a história e o desenvolvimento da América Latina sempre estiveram condicionados à estrutura de poder da região, "que nunca foi desconcentrada". O professor acrescenta que as elites dos países latino-americanos querem ter "padrões de consumo do Primeiro Mundo", mas lembra que o PIB (Produto Interno Bruto) nos países desenvolvidos é quatro ou cinco vezes maior do que os verificados na América Latina. "O problema é estrutural, e precisa de reformas estruturas profundas para ser superado", afirma ele, destacando a necessidade de desconcentrar o poder para desconcentrar renda e de desconcentrar renda para desconcentrar o poder.

O filme também mostra como o embate entre monetaristas e desenvolvimentistas vem de longe no Brasil. Presente de forma tímida em alguns momentos nos governos Fernando Henrique Cardoso, em que os primeiros tiveram ampla predominância, e reaquecido no governo de Luiz Inácio Lula da Silva, com um relativo ganho de fôlego dos desenvolvimentistas, o debate foi marca, por exemplo, da década de 1950. Naquela ocasião, os monetaristas, personificados nas figuras de Roberto Campos e Octávio Bulhões, se chocaram com os desenvolvimentistas, liderados por Furtado, que vencem o debate e subsidiam um período de crescimento do Brasil sob o comando do Estado.

Em outra passagem do documentário, o economista afirma que o Brasil só existe como é hoje – territorialmente, economicamente – pelo papel que o Estado teve. Para ele, a ojeriza ao papel do Estado apregoada por alguns "nega a importância desse Estado", que, para Furtado, "nunca foi grande o suficiente para poder enfrentar o tamanho dos problemas do Brasil".

Além da dependência tecnológica, financeira e econômica do Brasil, o professor destacava a importância da dependência cultural como elemento central no subdesenvolvimento do país. Em "O Longo Amanhecer", a professora da Unicamp Maria da Conceição Tavares discorre sobre essa questão, explicando que Celso Furtado considerada a elite brasileira "alienada" ao passo que ela, mais "grosseira", chamava-a de "vendida" mesmo.

Tavares é uma das principais personagens do documentário, graças à sua "personalidade muito forte e discurso brilhante", conforme definiu o diretor do filme José Mariani. Em entrevista à Carta Maior após a pré-estréia, realizada no primeiro dia do seminário "Pobreza e Desenvolvimento no Contexto da Globalização", Mariani explicou que começou a pensar na realização do documentário em 2003 e que só foi realizar a entrevista com Celso Furtado um ano depois.

O depoimento de Furtado a Mariani, alguns meses antes da morte do professor, impressiona pela lucidez do protagonista em retomar sua história desde 1920 e vai aos poucos sendo dividido com o público ao longo do documentário. O filme aborda, por exemplo, a ida de Furtado à Europa em plena Segunda Guerra Mundial, resgata com detalhes a criação da Sudene (Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste) no final da década de 1950, o exílio dele após o golpe militar de 1964. Sempre permitindo ao professor mostrar – de forma bastante modesta e serena – as relações entre sua história e a do Brasil, bem como a atualidade de seu pensamento, o filme deve entrar no circuito comercial neste segundo semestre de 2006.

Mariani destaca que existem poucos filmes que falam sobre os intelectuais brasileiros. "A matéria-prima é a reflexão, e é difícil conciliar a densidade dessas questões com a comunicação delas ao público", analisa o diretor, que coloca esse como desafio a ser enfrentado. Mariani acrescenta que acha possível unir as duas coisas e que o filme será lançado também em DVD, não só em português como em inglês, francês e espanhol.
Antes de "O Longo Amanhecer" ser encerrado com imagens da vida de Celso Furtado com sua família, amigos, políticos e colegas de academia, o documentário vai fundo em uma frase do professor registrada em 1999 no livro que dá nome ao filme: "Nunca estivemos tão longe do país com que sonhamos um dia", dizia o professor no primeiro ano do segundo governo de Fernando Henrique.

Os problemas brasileiros do desemprego – especialmente entre os jovens –, da educação, saúde e outros são lembrados pelo documentário, que destaca como outras questões cruciais do país a dívida externa, "que precisa ser renegociada" e a dívida interna, "que estrangula o Estado". A necessidade um plano nacional de desenvolvimento também é destacada, necessariamente com a questão das desigualdades sendo enfrentada.

O circuito comercial não deve ser o principal espaço de veiculação do filme, mas sua chegada é mais que bem-vinda, ainda mais em um ano no qual o país decidirá seu próximo presidente, governadores, deputados estaduais e federais, além de senadores. Mariani explica que o circuito universitário deve ser um outro caminho de exibição do filme, que registra e amplia idéias do mestre Celso Furtado a serem conhecidas pelo maior número de brasileiros possível – fica a dica para os professores do país.
——————————————————————————–

QUEM FOI CELSO FURTADO

Celso Monteiro Furtado nasce a 26 de julho de 1920 em Pombal, no sertão paraibano, filho de Maria Alice Monteiro Furtado, de família de proprietários de terra, e Maurício de Medeiros Furtado, de família de magistrados. Após seus estudos secundários no Liceu Paraibano e no Ginásio Pernambucano do Recife, chega ao Rio em 1939, entra para a Faculdade Nacional de Direito e começa a trabalhar como jornalista na Revista da Semana. Em 1943, é aprovado no concurso do DASP para assistente de organização, indo trabalhar no Rio e em Niterói. No ano seguinte, cursa o CPOR, conclui o curso de Direito e é convocado para a Força Expedicionária Brasileira. Com a patente de aspirante a oficial, segue para a Itália, servindo, na Toscana, como oficial de ligação junto ao V Exército norte-americano, e sofre um acidente em missão durante a ofensiva final dos aliados no Norte da Itália.

Em 1946, ganha o prêmio Franklin D. Roosevelt, do Instituto Brasil-Estados Unidos, com o ensaio "Trajetória da democracia na América". Viaja para a França, ins
creve-se no curso de doutoramento em economia da Universidade de Paris-Sorbonne, e no Instituto de Ciências Políticas. Envia reportagens para a Revista da Semana, Panfleto e Observador econômico e financeiro, entre outras, narrando sua experiência como integrante de uma brigada francesa de reconstrução de uma estrada na Bósnia, e sua participação no Festival da Juventude em Praga. Em 1948, é feito doutor em economia pela Universidade de Paris, com a tese "L’économie coloniale brésilienne", dirigida por Maurice Byé, obtendo a menção très bien. De volta ao Brasil, retoma o trabalho no DASP e junta-se ao quadro de economistas da Fundação Getúlio Vargas, trabalhando na revista Conjuntura econômica. Casa-se com Lucia Tosi.

Em 1949, instala-se em Santiago do Chile para integrar a recém-criada Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), órgão das Nações Unidas que se transformará na única escola de pensamento econômico surgida no Terceiro Mundo. Nasce seu filho Mário. No ano seguinte, quando o economista argentino Raúl Presbisch assume a secretaria-executiva da CEPAL, é nomeado Diretor da Divisão de Desenvolvimento, e até 1957 cumpre missões em diversos países do continente, como Argentina, México, Venezuela, Equador, Peru e Costa Rica, e visita universidades norte-americanas onde então se inicia o debate sobre os aspectos teóricos do desenvolvimento. É de 1950 seu primeiro ensaio de análise econômica, "Características gerais da economia brasileira", publicado na Revista brasileira de economia, da FGV. Em 1952, "Formação de capital e desenvolvimento econômico" é seu primeiro artigo de circulação internacional, traduzido para o International Economic Papers, da Associação Internacional de Economia.

Em 1953, preside no Rio o Grupo Misto CEPAL-BNDE, que elabora um estudo sobre a economia brasileira, com ênfase especial nas técnicas de planejamento. O relatório do Grupo Misto, editado em 1955, será a base do Plano de Metas do governo de Juscelino Kubitschek. Em 1954, com um grupo de amigos, cria o Clube de Economistas, que lança a revista Econômica Brasileira. Nasce seu filho André. Em 1956, mora na Cidade do México, em missão da CEPAL. Passa o ano letivo de 1957-58 no King’s College da Universidade de Cambridge, Inglaterra, a convite do professor Nicholas Kaldor. Aí escreve a Formação econômica do Brasil, que será seu livro mais difundido.

De volta ao Brasil, desliga-se definitivamente da CEPAL e assume uma diretoria do BNDE. É nomeado, pelo presidente Kubitschek, interventor no Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste. Elabora para o governo federal o estudo "Uma política de desenvolvimento para o Nordeste", origem da criação, em 1959, da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), com sede no Recife. Em 1961, como seu superintendente, encontra-se em Washington com o presidente John Kennedy, cujo governo decide apoiar um programa de cooperação com o órgão, e, semanas depois, com o ministro Ernesto Che Guevara, chefe da delegação cubana à conferência de Punta del Este, para discutir o programa da Aliança para o Progresso. Em 1962 é nomeado, no regime parlamentar, o primeiro titular do Ministério do Planejamento, quando elabora o Plano Trienal apresentado ao país pelo presidente João Goulart por ocasião do plebiscito visando a confirmar o parlamentarismo ou a restabelecer o presidencialismo. No ano seguinte deixa o Ministério do Planejamento e retorna à Superintendência da SUDENE, quando concebe e implanta a política de incentivos fiscais para os investimentos na região.

O Ato Institucional nº 1, publicado três dias depois do golpe militar de 31 de março de 1964, cassa os seus direitos políticos por dez anos. Têm início seus anos de exílio. Ainda em abril, aceita um convite para dar seminários em Santiago do Chile. Meses depois, em New Haven, Estados Unidos, será pesquisador graduado do Instituto de Estudos do Desenvolvimento da Universidade de Yale. Faz conferências em diversas universidades norte-americanas e participa de vários congressos sobre a problemática do Terceiro Mundo. Em 1965, muda-se para a França, a convite da Faculdade de Direito e Ciências Econômicas da Universidade de Paris, e assume a cátedra de professor de Desenvolvimento Econômico. É o primeiro estrangeiro nomeado para uma universidade francesa, por decreto presidencial do general de Gaulle. Permanecerá nos quadros da Sorbonne por vinte anos. Em junho de 1968 vem ao Brasil pela primeira vez após sua cassação, a convite da Câmara dos Deputados. No correr do decênio de 1970, faz diversas viagens a países da África, Ásia e América Latina, em missão de agências das Nações Unidas. No mesmo decênio, é professor-visitante da American University, em Washington, da Columbia University, em Nova York, da Universidade Católica de São Paulo e da Universidade de Cambridge, onde é o primeiro ocupante da cátedra Simon Bolívar e é feito Fellow do King’s College. Entre 1978-81, integra o Conselho Acadêmico da recém-criada Universidade das Nações Unidas, em Tóquio. No mesmo período, recebe um mandato do Commitee for Developement Planning, da ONU. Entre 1982-85, como diretor de pesquisas da Ecole des Hautes Études en Sciences Sociales, dirige em Paris seminários sobre a economia brasileira e internacional.

A partir de 1979, quando é votada a Lei da Anistia, retorna com freqüência ao Brasil, reinsere-se na vida política e é eleito membro do Diretório Nacional do PMDB. Casa-se com a jornalista Rosa Freire d’Aguiar. Em janeiro de 1985 é convidado pelo recém-eleito presidente Tancredo Neves para participar da Comissão do Plano de Ação do Governo. É nomeado embaixador do Brasil junto à Comunidade Econômica Européia, em Bruxelas, assumindo o posto em setembro. Integra a Comissão de Estudos Constitucionais, presidida por Afonso Arinos, para elaborar um projeto de nova Constituição. Em março de 1986 é nomeado ministro da Cultura do governo do presidente José Sarney; sob sua iniciativa, é aprovada a primeira lei de incentivos fiscais à cultura. Em julho de 1988 pede demissão do cargo, retornando às atividades acadêmicas no Brasil e no exterior.

De 1987-90 integra a South Commission, criada e presidida pelo presidente Julius Nyerere, e formada por países do Terceiro Mundo para formular uma política para o Sul. Entre 1993-95 é um dos doze membros da Comissão Mundial para a Cultura e o Desenvolvimento, da ONU/UNESCO, presidida por Javier Pérez de Cuéllar. Entre 1996-98 integra a Comissão Internacional de Bioética da UNESCO. Em 1997 é organizado em Paris, pela Maison des Sciences de l’Homme e a UNESCO, o congresso internacional "A contribuição de Celso Furtado para os estudos do desenvolvimento", reunindo especialistas do Brasil, Estados Unidos, França, Itália, México, Polônia e Suíça. No mesmo ano é criado pela Academia de Ciências do Terceiro Mundo, com sede em Trieste, o Prêmio Internacional Celso Furtado, conferido a cada dois anos ao melhor trabalho de um cientista do Terceiro Mundo no campo da economia política. É Doutor Honoris Causa das universidades Técnica de Lisboa, Estadual de Campinas-UNICAMP, Federal de Brasília, Federal do Rio Grande do Sul, Federal da Paraíba e da Université Pierre Mendès-France, de Grenoble, França.

Em agosto de 1997 é eleito para a cadeira n. 11 da Academia Brasileira de Letras. Empossado em 31 de outubro, é saudado pelo Acadêmico Eduardo Portella.

BIBLIOGRAFIA

Ficção:
Contos da vida expedicionária – de Nápoles a Paris. (RJ, Zelio Valverde, 1946)
História econômica: L’économie coloniale brésilienne. (Tese de doutoramento, Université de Paris, 1948)
A economia brasileira. (RJ, A Noite, 1954)
Uma economia dependente. (RJ, Ministério da Educação e Cultura, 1956)
Formação econômica do Brasil. (RJ, Fundo de Cultura, 1959; SP, Editora Nacional, 1965; Brasília, Universidade de Brasília, cole

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

1 + 9 =