Marco Aurélio Weissheimer – Carta Maior
Um dos temas que será debatido no III Congresso do PT é o socialismo petista. Defender o socialismo hoje significa defender o que, exatamente? O PT está mais forte ou mais fraco do ponto de vista da construção de uma agenda política que aponte para algo que mereça o nome de socialismo?
Marco Aurélio Weissheimer – Carta Maior
Um dos temas que será debatido no III Congresso do PT é o socialismo petista. Defender o socialismo hoje significa defender o que, exatamente? O PT está mais forte ou mais fraco do ponto de vista da construção de uma agenda política que aponte para algo que mereça o nome de socialismo?
Qual a atualidade do debate sobre o socialismo? Defender o socialismo hoje significa defender o que, exatamente? Essas perguntas carregam consigo uma extraordinária complexidade que não aceita respostas rápidas e simplistas. E não aceita porque a possibilidade de retomada de um debate programático sério sobre o socialismo exige uma profunda reflexão sobre o caminho trilhado por essa tradição de pensamento e prática política. Uma tradição marcada por importantes vitórias, mas por erros e fracassos não menos importantes. A essa complexidade soma-se uma outra. Qual a relação do PT, hoje, 27 anos depois de sua fundação, com o debate sobre o socialismo? O que significa o socialismo petista, expressão que estará em debate no III Congresso do partido, entre os dias 17 e 19 de agosto deste ano? Que conceitos do pensamento de Marx e de outros autores da tradição socialista podem e/ou devem animar esse debate?
Antes de abordar mais diretamente essas questões, é importante lembrar qual é a certidão de batismo desse partido que pretende dar continuidade e renovar a tradição socialista. O PT nasceu, após quase vinte anos de ditadura militar, propondo-se a construir um instrumento político para os trabalhadores, tendo o socialismo como horizonte estratégico. No período de fundação, havia um leque de outras opções para quem quisesse se organizar politicamente em um partido do campo progressista e de esquerda: o trabalhismo de Brizola, o PSB, os partidos comunistas, que ainda não estavam na legalidade. Mas todas essas opções foram rejeitadas em nome de uma idéia central: na luta pela construção de uma sociedade que supere o capitalismo, é necessário dispor de um instrumento político independente dos trabalhadores. Foi com esse espírito que nasceu o PT.
A esquerda e a democracia
E nasceu fazendo a crítica de duas experiências históricas do campo de esquerda: o socialismo soviético que degenerou em regimes burocratizados e autoritários na própria União Soviética e no Leste Europeu, e a social-democracia européia. Vale a pena qualificar um pouco a crítica a essas duas experiências. A crítica ao modelo soviético baseia-se, entre outras coisas, na compreensão de que a democracia é um valor, um princípio, que deve ser incorporado na luta política da esquerda. De que democracia estamos falando aqui? Um bom caminho para responder tal questão é considerar o significado original da palavra: o governo pelo povo ou pelo poder do povo. Em seu livro Democracia contra capitalismo (Boitempo, 2003), Ellen Wood, professora de Ciência Política na Universidade de York, em Toronto (Canadá), faz a seguinte reflexão sobre a natureza desta definição de democracia:
É provável que essa definição tão ampla de democracia seja aceita pelos movimentos de oposição atuais, mas mesmo neste caso ainda haveria diferenças. Por exemplo, governo pelo povo pode significar apenas que o povo , como um conjunto político de cidadãos individuais, tem o direito de voto. Mas também pode significar a reversão do governo de classe, em que o homem comum desafia a dominação dos ricos. A definição usada neste livro se aproxima desta última, em que democracia, significa o desafio ao governo de classe. Dependendo da concepção de democracia que adotarmos, defende Ellen Wood, teremos diferentes concepções e práticas políticas. Essas diferenças apontadas pela autora podem ser muito úteis para pensarmos onde estamos politicamente e quais os caminhos que podemos adotar se queremos falar a sério de retomar o debate sobre o socialismo. Ela diz:
Num extremo, ficariam aqueles para quem a democracia é compatível com um capitalismo reformado, em que empresas gigantescas são mais socialmente conscientes e responsáveis perante a vontade popular, e certos serviços sociais são ditados por instituições públicas e não pelo mercado, ou no mínimo regulados por alguma agência (…) No outro extremo, estariam aqueles que acreditam que, apesar da importância crítica da luta em favor de qualquer reforma democrática no âmbito da sociedade capitalista, o capitalismo é, na essência, incompatível com a democracia. E é incompatível não apenas no caráter óbvio de que o capitalismo representa o governo de classe pelo capital, mas também no sentido de que o capitalismo limita o poder do povo. Não existe um capitalismo governado pelo poder popular, não há capitalismo em que a vontade do povo tenha precedência sobre os imperativos do lucro.
O contexto no qual o PT nasceu e cresceu
Essa passagem apresenta o núcleo da crítica à experiência social-democrata, crítica que, como dissemos, também marcou o nascimento do PT. É importante lembrar que os primeiros anos do PT foram marcados por uma ascensão mundial do neoliberalismo, ascensão que teve seus expoentes máximos nos governos de Margaret Thatcher, na Inglaterra, e de Ronald Reagan, nos Estados Unidos. Toda a condução da economia, neste período, esteve marcada pelo processo de privatizações e de crítica ao papel regulador e indutor do Estado. Contraditoriamente, o PT cresceu neste cenário. Na verdade, a contradição aqui é aparente. O PT cresceu justamente por causa de um processo crescente de urbanização, da formação de uma massa de assalariados, do desenvolvimento de grandes universidades ao longo dos anos 80 e 90.
E cresceu com outros atrativos também: a ética na política, uma outra visão sobre a moral pública (que estava muito desgastada e continua desgastada na política brasileira), e, sobretudo, a idéia da importância da participação popular. As experiências de governo do PT no Rio Grande do Sul mostraram a força da idéia e da prática da participação popular. A implementação do Orçamento Participativo nas cidades onde o partido chegou ao poder e, depois, em nível estadual, com o governo Olívio Dutra, tornou-se uma referência nacional e internacional para a esquerda. A escolha de Porto Alegre para sediar o Fórum Social Mundial foi o ápice desse reconhecimento. Não foi por acaso que, quando Germano Rigotto chega ao governo do Estado, uma de suas primeiras medidas foi acabar com o OP estadual, implantando um simulacro do mesmo, denominado Consulta Popular.
Não é por acaso, tampouco, que, agora, o governo Yeda Crusius acabou com o próprio simulacro. Nem Consulta Popular há mais. Há uma lógica operando aí. Quanto mais ligado aos interesses do grande capital um governo é, mais avesso à participação popular ele parece ser. O atual governo do Rio Grande do Sul, com menos de cinco meses, já deixou isso evidente. Merece particular atenção a conseqüência dessa lógica para o modelo de desenvolvimento a ser adotado e, mais do que nunca, para o meio ambiente. O que vemos hoje no Rio Grande do Sul é a total ausência de participação popular e de transparência na definição de políticas que interessam a toda a população. O que domina é a lógica e o interesse dos grandes negócios, das grandes corporações, uma lógica que não rima com participação popular. Temos aqui, portanto, um importante cruzamento que interessa ao debate sobre socialismo e sobre sua relação com a democraci
a.
As idéias socialistas e o presente histórico
Um cruzamento que nos lembra alguns elementos fundamentais do conceito de socialismo. As idéias socialistas nasceram em oposição à lógica gananciosa e individualista do grande capital. E essa lógica, além de toda a desigualdade social que engendrou no mundo, conseguiu a façanha também de acelerar a destruição ambiental do planeta. Os recentes estudos que apontam os efeitos que o aquecimento global já traz ao planeta são apenas a ponta do iceberg. Vivemos dias onde a destruição ambiental anda de mãos dadas com a privatização dos espaços públicos, com o rebaixamento da democracia a um mero procedimento eleitoral e, de modo mais geral, com uma desagregação social que aparece de modo mais explícito na violência urbana e rural, na banalização da vida, no sufocamento da solidariedade e na progressiva destruição do mundo do trabalho. É neste cenário mais amplo que se coloca hoje o debate sobre o socialismo.
Não há nenhum modelo de socialismo, pronto para ser implementado na prática. Nunca houve, aliás. O pensamento de Marx rejeita a idéia de modelo, entre outras razões pelo fato de ela desprezar o aprendizado com o presente histórico. Mas há algumas agendas e temas que são incontornáveis: a recusa de um modelo de desenvolvimento que trata a questão ambiental como uma perfumaria que pode ser colocada em segundo plano; a recusa da idéia de crescimento econômico a qualquer preço; a defesa da radicalização da democracia com participação popular; a luta contra a privatização dos espaços públicos; a defesa da democratização dos meios de comunicação; a luta contra a guerra, a injustiça, a pobreza e as desigualdades sociais de toda ordem. Todos esses temas estão aí a desafiar os partidos de esquerda de todo o mundo. E esse desafio adquire um caráter de urgência cada vez maior. Uma urgência que nos lembra que a atividade política não pode se limitar às disputas eleitorais, à briga por cargos e mandatos. Uma urgência que exige partidos e movimentos sociais sintonizados com os problemas do seu tempo.
Sobre o presente do PT
E aqui, é obrigatória uma reflexão sobre o presente do PT. O partido acaba de atravessar uma grave crise política que só não teve conseqüências mais trágicas em virtude de seu extraordinário enraizamento social. Mas a superação do estágio mais crítico da crise, com a reeleição de Lula para a presidência da República, não pode ser considerada como se os problemas que deram origem à crise tivessem acabado. Outros partidos de esquerda, em outros períodos históricos, sofreram problemas semelhantes: a burocratização de sua estrutura, a diminuição expressiva de sua democracia interna, a subordinação de interesses coletivos a projetos individuais, o abandono do debate teórico em nome de um pragmatismo rebaixado. Muitas organizações políticas sucumbiram a esses problemas por se recusar a enfrentá-los de frente, por varrê-los para debaixo do tapete como se fossem uma poeira menor.
As organizações políticas de esquerda, sejam partidos ou movimentos sociais, não estão encerradas em redomas, livres de contaminações de valores e práticas daquilo que pretendem combater. Ao contrário do que alguns podem pensar, não é possível derrotar o inimigo utilizando seus métodos e suas armas. A história não cansa de mostrar que esse é o caminho mais curto, não para derrotá-lo, mas sim para se parecer cada vez mais com ele. Há uma questão política de fundo envolvida aqui. Emir Sader, em seu livro A Vingança da Histórica, identifica assim tal questão: A crise hegemônica gerada pela realização e pelo conseqüente esgotamento do neoliberalismo como política e como modelo de sociedade é ao mesmo tempo uma crise política e teórica, que requer práticas políticas novas e novas capacidades de elaboração teórica . Esse é o tamanho do problema que desafia a todos aqueles que se propõem a debater a sério a atualidade de uma agenda socialista.
Esse debate tem algumas pré-condições, contidas na formulação de Emir Sader. Como é que anda mesmo a prática política cotidiana do PT? E a sua capacidade de elaboração teórica? E a disposição em não varrer para debaixo do tapete os próprios erros? Construir um debate sobre socialismo e uma prática orientada por esse debate exige, para começo de conversa, saber onde estamos e como estamos. O mundo vive hoje um cenário de alta instabilidade política, econômica e ambiental. A militarização das relações entre as nações vem crescendo. A indústria bélica é uma das que mais cresce no mundo. E o planeta enfrenta um quadro de destruição ambiental nunca visto antes. É neste cenário que nos movemos. O debate sobre socialismo é um debate sobre o mundo no qual estamos vivendo. É um debate sobre qual desenvolvimento queremos, qual matriz energética, que tipo de agricultura, que tipo de Estado, qual democracia.
Uma provocação final
O PT está preparado para essa tarefa? Cabe aqui uma provocação final, a título de conclusão. No livro O Fim da Utopia Política e Cultura na era da Apatia, o historiador Russell Jacoby resume a situação da esquerda no mundo hoje da seguinte maneira: Somos cada vez mais insistentemente convidados a escolher entre o status quo ou algo pior que ele. Não parece haver outras opções (…) Não há alternativas. É esta a sabedoria do nosso tempo, uma era de exaustão e recuos políticos. Em seu livro, Jacoby procura rastrear uma certa tendência cultural para bater em retirada. O problema não é a derrota, mas o desânimo e a dissimulação intelectual, fingir que cada passo para trás ou para o lado significa dez passos à frente, observa o historiador, que acrescenta em seu diagnóstico: Hoje a visão apagou-se, a autoconfiança esvaiu-se e as possibilidades desapareceram. Por quase toda a parte a esquerda recua, não apenas politicamente, mas também o que pode ser mais decisivo ainda intelectualmente.
Fica a provocação final. Considerando os problemas e desafios elencados até aqui, o PT está avançando ou recuando? Está mais forte ou mais fraco do ponto de vista da construção de uma agenda política que aponte para algo que mereça o nome de socialismo? A resposta a tais questões pode orientar a qualidade do debate e da prática política que pretende ter o socialismo como horizonte estratégico. (Marco Aurélio Weissheimer)