Reflexões sobre as causas de desastres do capitalismo

Tragédias como a da TAM, da Gol, do Concorde em 2000, dos petroleiros nos anos 70, da plataforma P-37 e da barragem da mineradora Rio Pomba tiveram causas específicas, mas uma é sistêmica: a ganância pelo dinheiro.

       Bernardo Kucinski

 

Vão dizer que eu estou exagerando. Lá vem ele de novo, culpando o capitalismo por tudo, até mesmo por essa fatalidade que foi a tragédia do avião da TAM. Além do mais, causada provavelmente pela condição da pista, negligência da Infraero, ou seja, culpa do Lula…

Mas será que o exagero não está em atribuir um acidente desse porte a uma pista apenas molhada num dia de chuva leve? Houve certamente uma causa material, específica, ou um conjunto de causas. E a pista pode ter sido uma delas. Mas só a pista não explica o desastre. Houve dezenas de outras decolagens e aterrissagens debaixo de chuva na mesma pista.

O grande desastre com o Concorde em agosto de 2000, que levou ao abandono desse supersônico três anos depois, também aconteceu por uma seqüência incrível de causas: a primeira delas, um pequeno pedaço de metal desprendido de um pneu numa decolagem anterior e que passou desapercebido na varredura de rotina da pista.

Há outro elemento comum entre os desastres do Concorde e do Airbus: o gigantismo dos aviões. O Concorde era um gigante com capacidade de 100 passageiros e 185 toneladas na decolagem. Foi derrubado por um pedaço de arame, não por causa do tamanho do arame, por causa do tamanho do avião. O Airbus 320 também é um gigante. Pode decolar com até 77 toneladas.

Os engenheiros dizem que ele precisa de 2.200 metros de pista para pousos com margem razoável de segurança. A pista de Congonhas tem 1939 metros. Dá para pousar. Pousou inúmeras vezes. E tudo indica que o desastre não aconteceu por causa do tamanho da pista ou da condição da pista. O avião nem conseguiu frear, portanto nem chegou a derrapar.

Mas a permissão para o Airbus operar em Congonhas, sem muita margem de segurança, não é mero acaso, é uma imposição do mercado. Da voracidade da demanda por assentos em vôos regionais. Da ganância. O Concorde também nasceu de pesquisas de mercado. Surgiu no apogeu das multinacionais americanas. Tomar o café da manhã em Nova York e almoçar em Paris, mesmo voando contra o fuso horário. Essa era a idéia. Uma demanda do mercado.

Na década de 70, sucediam-se desastres com navios petroleiros. Colidiam com terminais e outros navios, provocando derrames enormes de óleo, matando peixes, poluindo quilômetros de praias. Cada desastre tinha sua causa específica ou conjunto de causas. Mas o fator comum a todos eles era o tamanho dos petroleiros, gigantes de até 400 mil toneladas, verdadeiros Titanics possuídos de tanta inércia que uma correção de rumo tinha que ser decidida um dia antes. A maioria eram petroleiros de bandeira liberiana; artifício usado pelos armadores para manter tripulações mínimas e burlar rigores de fiscalização. Ganância da indústria do petróleo, a serviço da voracidade americana por petróleo barato do Oriente Médio.

Seis anos atrás, um incêndio eclodiu a maior das plataformas marítimas da Petrobrás, a P-37, do campo de Roncador. Seguiram-se explosões. Morreram dez operários e a plataforma foi totalmente perdida. O desastre teve causas específicas. Ventilação deficiente, despreparo no combate ao fogo. Mas o fator sistêmico do desastre foi a terceirização da exploração de petróleo para reduzir custos trabalhistas e, de quebra, enfraquecer os sindicatos dos petroleiros, vistos pela direção neoliberal da Petrobrás como uma “elite” operária. Neoliberalismo e ganância.

No começo deste ano, rompeu-se uma barragem da mineradora Rio Pomba, em Minas, inundando e enlameando seis cidades, rio abaixo, até o Estado do Rio de Janeiro. O desastre teve causas específicas, a principal delas a forte concentração de chuvas naqueles dias. Mas o fato é que a barragem de oito metros de altura e capacidade para 200 milhões de litros foi construída sem licença ambiental e não possuía mecanismos para o escoamento. Economia, ganância e negligência do Estado, esvaziado por décadas de neoliberalismo.

Em janeiro deste ano, um desabamento engoliu sete pessoas nas obras da linha 4 do metrô de São Paulo. Um grande desastre. Certamente provocado por causas específicas. Talvez, erros nos índices de estabilidade do solo ou na aplicação das camadas de cimento do túnel, agravadas pelo recurso a explosões como método de escavação. O consórcio tinha pressa. As mesmas empresas iriam depois operar a linha 4 em regime de concessão. Havia prêmios de desempenho para as subcontratadas que ganhassem tempo no cronograma de trabalhos. O Estado olhava para o outro lado, porque também tinha interesse político numa inauguração antes das eleições municipais de 2008. O menor tempo teve preferência sobre a maior segurança. Política, ganância e negligência do Estado.

A tragédia com o avião da Gol, impossível estatisticamente de acontecer, no entanto aconteceu por um somatória incrível de causas específicas. Nenhuma delas sozinha teria levado à colisão. E mais: bastava uma delas não ter acontecido para não ter havido colisão. Aquilo, sim, foi um a tragédia em que o acaso falou mais alto. Mesmo assim, houve influência de pelo menos um fator sistêmico: o regime de trabalho dos controladores de vôo, em número insuficiente para o mercado que cresceu rapidamente. Duas décadas de neoliberalismo, impediram que Estado contratasse mais servidores, que fizesse concursos públicos. Seu mote era terceirizar e privatizar. Esvaziar o aparelho de Estado. Enquanto isso, o transporte aéreo crescia e crescia. Negligência e neoliberalismo.

Querem que eu continue? Ou vamos parar por aí?

Bernardo Kucinski, jornalista e professor da Universidade de São Paulo, é colaborador da Carta Maior e autor, entre outros, de “A síndrome da antena parabólica: ética no jornalismo brasileiro” (1996) e “As Cartas Ácidas da campanha de Lula de 1998” (2000).

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