A gralha azul e a asa branca – A araucária e a cajarana

 

 

 

 

Temos uma capacidade ilimitada de imaginar, de pensar situações e circunstancias, de criar cenários, reais e fictícios. Fazer análise de conjuntura, nos postar diante dela, planejar e executar atividades, pensar coletivamente. Isto é o que nos faz humanos e nos coloca, como grande desafio, conhecer as realidades e agir sobre elas transformando-as. Porém, tenho a sensação que, algumas vezes, em algumas situações, nossas ações estão à frente de nossa imaginação. Um rio não tem a mesma velocidade de uma margem a outra. A água mais veloz é a que está no centro do seu leito. Quanto mais perto da margem, mais lentamente corre sua água. Mas isto não as torna desiguais apenas diferentes. Buscam o mesmo mar. Não as impede de ser também e igualmente água e rio. Na educação popular parece ocorrer fenômenos semelhantes.

Estive, no espaço de cinco dias, em duas situações, em dois rios diferentes, ouvi cantos de diferentes passarinhos e estive na sombra de diferentes árvores. A água, contudo, era a mesma. Estive em São Mateus do Sul, no Paraná, nos dias 19 e 20 de Junho, onde participei de um encontro microrregional da Rede de Educação Cidadã. Homens e mulheres, jovens e adolescentes e crianças e idosos, qual gralhas azuis, sob o olhar imponente e inspirador das araucárias, semeavam sonhos, idéias e assumiam compromissos. As mulheres das padarias comunitárias trouxeram o sempre atual e necessário milagre do pão. Com simplicidade e sabedoria chegam com suas ações, aonde as palavras sozinhas não podem chegar. Os clubes de troca, também com as mulheres, deram uma lição de humanização que não se aprende nas escolas. Amorosidade, fraternidade, indignação e esperança. A acolhida carinhosa a partilha da palavra, a escuta, o abraço, a vida como bem maior. A equipe de educadores de comunicação do CEFÚRIA[1], com o apoio da Rádio Comunitária Associação Bom Samaritano – ABS – de Rio Branco do Sul, deixaram claro qual é a diferença entre comunicar-se e fazer comunicados. O que é comunicar para a liberdade. A acolhida solidária pelas famílias de Rio Branco do Sul deixa claro que a revolução já começou. Cinqüenta pessoas de 12 municípios acolhidas pelas famílias locais. Quem disse que o recurso é escasso? Até pode ser, mas a solidariedade abunda.

O grupo de jovens “de bem com a vida” de Rio Branco do Sul denunciou a violência contra os jovens, sobretudo da policia, a ausência quase absoluta de oportunidades de estudar, de trabalhar e de lazer. Anunciou as expressões, sobretudo culturais e a esperança que deu sinal de vida com o trabalho do CEFÚRIA e da Rede de Educação Cidadã. E, com este encontro microrregional, onde podemos conhecer outros jovens e outras experiências de outras regiões do Estado do Paraná e, através dos materiais e dos testemunhos, bem como da região Sul e do Brasil, através dos representantes que têm a visão do todo. Temos a sensação de não estarmos mais sozinhos. Neste sentido foi extraordinária a contribuição dos representantes da região de Guarapuava, sobretudo o grupo de jovens “CORAJEM” de Irati, que já caminha com a Rede há algum tempo. Trabalhando temas Economia Solidária, agro-ecologia, juventude e, agora, Educação Popular Freireana.

Pela primeira vez participamos de um encontro tão amplo e tão gostoso como este. Foi assim que disseram os representantes da comunidade quilombola do município de João Surá. Em João surá não tem nenhum colégio de segundo grau. Somente de primeira à quarta série. O acesso às cidades que dispõem deste serviço público é precário e muitas vezes impossível. Se chover – quase todo dia chove – não passa carro, disse a jovem. Que completou: eu fiz o terceiro ano estudando 20 (vinte) dias no ano. Pode? Como é que eu vou concorrer com emprego ou vestibular com outras pessoas que estudam todo dia e têm outras oportunidades? Lá foi batizado e é chamado de “o fundo do coador”, água só de nascente e já está contaminada por causa da plantação desordenada de pinus. Graças a Deus as coisas começam a melhorar. Com os programas e com as políticas do governo federal chegando à gente diz que lá ta virado o coador. Nós não temos vontade e nem pensamos em sair de lá. Aprendemos muito com nossos pais o que, hoje aqui descobrimos, não se aprende nas escolas. Aprendemos a amar, a respeitar e cuidar da terra e da natureza. A cuidar uns dos outros. Somos felizes no nosso lugar e com a nossa gente, vivendo a nossa cultura.

Tudo isto, ou boa parte destes relatos estão registrados nos olhos sempre atentos e caminhantes da “QUEMTV” produtora do CEFÚRIA, responsável por grande parte do registro da caminhada do povo que sonha e luta no Paraná. É importante dizer que, o CEFÚRIA abraçou com fraternidade e firmeza o TALHER, hoje conhecido como Rede de Educação Cidadã e colocou a serviço da nova geração, seus 25 anos de experiência em educação popular e de sonhos. Hoje, na construção dialógica dos sonhos e saberes, avançamos em momentos metodológicos importantes. A saber: planejamento participativo, execução solidária e coletiva, coletivos de estudos e aprofundamento teórico, comunicação popular como prática e exercício da liberdade, avaliação fraterna e pedagógica e sistematização de tudo isto. Hoje, há um trecho percorrido, mas o mais importante é que, é possível olhar e ver este trecho. Através dos registros escritos ou filmados e isto ajuda a fazer avaliação realista e a alimentar a esperança. A relação campo cidade é um exemplo deste percurso visível de nosso caminhar. O que aprece e se fortalece nos encontros microrregionais. Porem ainda temos muito a conquistar. Por mais que não seja pouco o já feito resta muito mais a fazer.

O contraste

Saí da sombra da araucária, distanciei-me do canto da gralha azul, desfiz-me de quatro quintos das vestimentas que usava, já que o frio do Paraná estava abaixo de 10 graus, e fui para a cidade de Orós, no Ceará. Terra do canto da asa branca. Lá chegando, conheci a cidade de Orós no sertão cearense. O açude Orós sangrando água e transbordando beleza, ostenta imponente a estátua de JK. Água no sertão e para o sertanejo é Deus vida presente. Chegamos à comunidade “AROEIRAS” onde acontece o projeto “Sertão Vivo” coordenado pelo poeta, compositor e cantor, Zé Vicente. No caminho passamos pela vila “Guassussê”. Trata-se de uma comunidade composta pelos desabrigados pelas águas do Orós. Quem chega à sede do projeto “Sertão Vivo” logo sente que está em lugar especial. A arte e a cultura passeiam nas cercas, nas paredes, nas árvores – que são muitas e frondosas – nas camisetas, nas canções, nas conversas e nos sorrisos. A vida é plena e abundante.

Depois de carinhosa acolhida nos sentamos sob um pé de cajarana[2]. Um grande círculo, uma sombra que convida a namorar e foi o que fizemos. Ao som de uma orquestra de passarinhos que não tinham inveja da voz de Zé Vicente, de Eliane, do coral “Sertão Vivo”, mas somava-se a eles, nos apresentamos. Acolhemos-nos mutuamente, nos abraçamos e fizemos uma oração. Se você que está lendo este texto já está com água na boca, prepare o seu coração. A primeira atividade do encontro era uma oficina com o monge Beneditino Irmão Marcelo Barros. O tema de sua oficina foi exatamente – mesmo que com outras palavras – aquilo que, a meu ver, é tema central na Rede de Educação Cidadã e também na sociedade atual: “Espiritualidade num tempo de urgência”. Entre um canto e outro, hora Zé Vicente e Eliane, hora Eliane e o coral, hora os passarinhos, hora todos juntos, nos namoramos e namoramos à vida.

 

São momentos, oportunidades, que nos abastecem de esperança, nos aproximam de Deus, porque nos deixam mais próximos uns dos outros. Ali me reencontrei com minha infância, sorri e chorei. A expressão que me veio com freqüência foi esta: “não há necessitados entre eles”; ou ainda: “ vejam como eles se amam e são felizes!” Crianças brincam, jovens namoram, passarinhos cantam e todos são felizes. Esta foi a primeira real aproximação da Rede de Educação Cidadã com o projeto “Sertão Vivo”, mas rogo que outros momentos como este aconteçam e que possamos aprender uns com os outros. Hoje temos muito o que aprender com a família “Sertão Vivo” e não podemos perder tal oportunidade.

 

Quando discutimos na Rede, organicidade, sustentabilidade, quando falamos em metodologia libertadora, quando buscamos momentos e espaços pedagógicos favoráveis à nossa ação, pensamos algo que deve ser muito parecido com o que ver quem vai a Aroeiras e conhece o projeto “Sertão Vivo”. Lá entendemos melhor sobre um outro mundo possível, sobre outra economia possível e necessária. Lá quando se acende a fogueira, queima-se mais que lenha queima-se paixão pela vida, amor pela comunidade e pelo próximo, que pode até está distante, mas continua o próximo. Mesmo não podendo ficar para o “São João Sertão Vivo de Aroeiras”, pois tive que viajar logo após ajudar a acender a fogueira, reacendeu e reanimou em mim a fogueira do compromisso com um projeto popular para o Brasil.

 

É em momentos como estes, seja no Paraná ou no Ceará ou em qualquer outro lugar deste extenso, rico, lindo e ainda injusto país, que entendo e admiro cada dia mais o Presidente Lula. Foi assim que o filho de dona Lindu aprendeu a fazer política. Foi andando pelo Brasil, conhecendo seu povo, desvelando suas realidades múltiplas e, sobretudo escutando mais que falando. Foi vivendo concretamente esta realidade. Foi indignando-se com a malvadez contra os pequenos que Lula se fez o líder de um povo. Não basta por uma camiseta com uma frase sobre justiça, é preciso agir com justiça. Não basta falar bonito sobre educação popular ou defini-la como importante, é preciso praticá-la. Não é suficiente constatar que há violência, é preciso, primeiro não ser violento e lutar contra a violência. E isso começa de dentro pra fora. Comigo mesmo, com os coletivos com os quais trabalho. Minhas ações precisam falar mais que minhas palavras. Foi isso o que vi em comum debaixo de uma araucária e debaixo de uma cajarana. É isso o que vejo a cada dia, a cada encontro, acontecer na Rede de Educação Cidadã, que coordeno com outros homens e mulheres a partir do setor de mobilização social do Gabinete Pessoal do Presidente Lula.

 

João Santiago Poeta e Militante. É teólogo e autor dos livros: “Militância e Poesia”; Vida e Poesia“ e “Chuvas de Prata” – reflexões de um Poeta, pela Editora Gráfica Popular. A venda no CEFÚRIA.

E-mail: [email protected]


[1] CEFÚRIA: Centro de Formação Urbano Rural Irmã Araújo. www.cefuria.org.br

[2] CAJARANA: Árvore frutífera, típica do sertão Nordestino. Seu fruto assemelha-se ao umbu. Para quem não conhece umbu, pense em ciriguela, também vale.

 

 

 

 

 

 

 

 

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