Nas pegadas do profeta dos excluídos

O Jornal do Comércio percorreu os nove Estados nordestinos, além do Tocantins, para refazer o mapa da fome de Josué de Castro

Sem fazer alarde, silenciosa e sorrateira, como um bicho que se enfia pelo mato, a fome corrói os lares miseráveis do Sertão nordestino e do brejo dos canaviais. Faz estrago sem pressa. Matando aos poucos, surda e continuadamente, seu exército de famintos. Nas duas regiões, uma árida pela própria natureza e a outra erodida pelo homem, o mal-assombro se espalha, na sua versão mais perigosa. De forma oculta, camuflada num prato de feijão, num cuscuz de milho, que se come dia sim, dia não. O Jornal do Commercio se embrenhou nos mangues, na Zona da Mata pernambucana e pelo Semi-Árido dos nove Estados do Nordeste e foi até Tocantins, no Norte do País, para refazer os caminhos traçados pelo médico e geógrafo Josué de Castro no livro Geografia da Fome, publicação que acordou o Brasil para o flagelo dos que nada ou pouco têm para comer.

Na jornada de quase 10 mil quilômetros por estradas esburacadas e empoeiradas onde deságuam todas as veredas e sertões, a reportagem descobriu que o monstro da fome amansou, comparado ao tempo em que Josué de Castro o revelou para o mundo. Mas está longe de ser domado. A velha esquelética do chapéu grande, como os sertanejos de antigamente retratavam a figura da fome, persiste, alimentada por uma miséria que separa os que têm e podem quase tudo dos que não têm nada. Uma legião de excluídos que no Brasil somam quase 14 milhões. Quatorze milhões de bocas incertas da comida de amanhã.

Hoje, data em que Josué de Castro completaria 100 anos, é a audaciosa voz do cientista e, sobretudo, do homem, que conduz a viagem feita pelas próximas páginas deste caderno especial. Uma viagem pela região que, segundo o próprio Josué, solidificava a ultrajante condição humana do brasileiro. O Nordeste, esse “imenso cenário de cerca de 600 mil milhas quadradas de superfície, exibindo, por toda parte, os sinais inconfundíveis de seu sofrimento cósmico.” O geógrafo, sociólogo, escritor e também político Josué morreu há 35 anos. Sua obra, no entanto, reverbera cada vez mais alto pelos cantos dos fins de mundo, nas palavras que ecoam em constrangidas panelas vazias.

Na jornada pelos caminhos da fome, a reportagem achou personagens da ciência e da literatura de Josué, conheceu aqueles que conseguiram subverter a ordem do sistema agrícola e cruzou a região das fomes classificadas pelo próprio Josué como endêmicas, as que, entra inverno e sai inverno, não passam. Porque a endemia dos famintos brasileiros está relacionada a acesso e não à disponibilidade de comida.

É no mesmo Brasil das safras recordes que se chora por comida. É no mesmo Brasil que louva o agronegócio das toneladas de grãos que se dói de fome. Hoje, o maior acesso à alimentação tem agora nome de batismo: Bolsa-Família. Se com ela o cenário é de penúria, sem ela seria de genocídio. O assistencialismo no País das abundâncias se enraíza por terras secas de outras alternativas. Homens e solo sedentos por uma reforma agrária longe de ser concretizada.

Como cúmplice de uma predadora economia global, o Brasil entra assim na roda das especulações financeiras que transformam comida em artigo da Bolsa de Valores. O que para Josué de Castro deveria ser entendido como um direito do ser humano, se torna dinheiro vivo nas mãos de transnacionais. É, portanto, nesse cenário de grandes volumes numéricos que a obra de Josué ganha força. Porque não é genérica, e sim individual. Josué está de tocaia, desafiando as predições do desenvolvimento.

Para Frei Betto, que já esteve à frente do cenário político como assessor especial do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e foi um dos mentores do programa Fome-Zero, Josué ainda é “um profeta do futuro”. “Suas idéias e propostas são louvadas, porém pouco ou nada praticadas. É preciso divulgá-las por toda parte, em todos os meios de comunicação, para que o Brasil fique livre, definitivamente, de sua maior chaga: a fome de milhões de pessoas.”

Nas próximas páginas, a obra de Josué de Castro será divulgada não por suas palavras, mas pelas histórias daqueles que formaram a visão de mundo desse pensador. São relatos muitas vezes de dor extrema, tão aguda que muitas vezes anestesia e se cala. Em um Brasil que não pode mais se alimentar de suas vergonhas.

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