Morte sorrateira do exército miserável

No dia em que o autor de Geografia da Fome completaria 100 anos, uma legião sofrida mostra a cara e a indisfarçada vergonha de quem não tem o que comer no século 21

“História de fome não é história que se conte”, dizia Zé Luís, o retirante de Homens e Caranguejos, único romance escrito por Josué de Castro. No semblante da indisfarçada vergonha de não ter o que comer, o homem emudece. E é para contrariar essas dores caladas, que as histórias do mapa da fome nordestina serão aqui documentadas, seja com palavras ou com choro. No dia do centenário do homem que rompeu com a conspiração de silêncio acortinada pela vergonha dos famintos, e no momento em que o Brasil comemora índices cada vez mais baixos de pobreza, a fome continua matando devagar milhões de pessoas. Um vexame que não acaba e que, no galopar do desenvolvimento, corre o risco de se esconder atrás de números vistosos, nas emboscadas das estatísticas que revelam melhoras, mas não fotografam os rostos daqueles que, a despeito de tudo, ainda sobrevivem do lado mais rasteiro dos gráficos.

Josué de Castro, o cientista dos homens insultados pela fome e criador de personagens como Zé Luís, conhecia bem os perigos das pressuposições. Quando começou a escrever, nos anos 30, acreditava-se que a fome no mundo era um problema natural, provocado pelo crescimento demográfico. Mas Josué, em sua medicina humana, colocou o dedo na ferida e desvelou a fome como sintoma maior de doenças políticas. Com isso, ele apontava para os perigos dos disfarces de que a miséria pode se vestir: “Muito mais terrível do que um surto epidêmico e do que o flagelo periódico das secas que dizimam de uma vez algumas centenas e milhares de vidas é esta desnutrição, esta subalimentação permanente que destrói surda e continuadamente toda uma população, sem chamar nossa atenção”, escreveu o médico pernambucano. Mesmo silenciosa, a fome não se deixa enganar.

Ela mora, implacável, na casa da agricultora Francisca da Conceição Souza, 49 anos, matriarca da família que se alimenta de luz. Eram quase 17h, quando a reportagem estacionou o carro no terreiro de dona Francisca, na zona rural de Ipubi, no Sertão de Pernambuco. Ninguém ali havia ainda almoçado. Àquela hora, tudo o que crianças e adultos tinham comido era um beiju de mandioca com café pela manhã. Os meninos acordaram pedindo comida. Como não havia, e a hora avançava, dona Francisca foi tratar de arrumar. Com autorização do dono, catou umas favas no roçado vizinho. O que conseguiu juntar estava cozinhando na panela quando o JC chegou a sua casa.
“Só peço no derradeiro apuro, porque é humilhante passar fome. Já inteirei dois dias sem comer, mas ver as crianças de barriga vazia eu não agüento”, confessa, sem conter as lágrimas. A desnutrição grave comprometeu o futuro de um dos seus netos. O menino, de 6 anos, quase morre. “Já estava na conta dos anjinhos”, diz a avó. Escapou, mas as pernas finas andam com dificuldade. Dona Francisca diz que o menino não fala, é meio “anormal”. A família agora tenta aposentá-lo. Na terra da fome, crianças já nascem velhas.

Em Pilão Arcado, no Sertão da Bahia, Evilásio Ferreira dos Santos, 56, também sonha com a aposentadoria. Nunca foi ao médico, nem pisou numa escola. Vive com um filho, desde que a mulher se separou, levando com ela o cartão do Bolsa-Família. Faz 20 dias que ele não arruma um dia de serviço. Nenhum centavo. Na casa de seu Evilásio não havia nada para comer. Em outros lares sertanejos, a reportagem ainda encontrava um resto de feijão, um pacote de arroz, um punhado de farinha de mandioca ralada. Mas na dele todas as panelas estavam vazias. Como seu Evilásio vive? “Pelejando, enganando a barriga”. Josué de Castro, em seus escritos, completa a frase do velho sertanejo: “Só existe uma pergunta a formular: Como se pode comer assim, e não morrer de fome? E só há uma resposta a dar, se bem que um tanto desconcertante: ‘Como? Morrendo de fome’”.

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