Os esquecidos no Cafundó do Sertão cearense

Bem-vindo ao Cafundó, a terra do esquecimento e do abandono. Aonde só se chega após 45 minutos de caminhada subindo uma serra que leva ao encontro de famílias vivendo muito abaixo do que se convencionou chamar linha da pobreza. O mal-assombro da fome pesa sobre a serra e a gente, transformando tudo em privação.

Bem-vindo ao Cafundó, a terra do esquecimento e do abandono. Aonde só se chega após 45 minutos de caminhada subindo uma serra que leva ao encontro de famílias vivendo muito abaixo do que se convencionou chamar linha da pobreza. O mal-assombro da fome pesa sobre a serra e a gente, transformando tudo em privação. Não há energia, saneamento, água encanada, casa de tijolo. Quando os velhos adoecem ou precisam ir à cidade, descem a serra carregados numa rede, como se o tempo ali fosse ainda o das cavernas. O povo do Cafundó vê o município de Choró, no semi-árido do Ceará, do alto, mas não se sente parte dele. É o povo da fome, onde as crianças crescem tomando garapa e os adultos tentam, em vão, exercitar a esperança.

O sol e o calor dão às casas de taipa do Cafundó uma aridez sufocante. É a primeira vez que uma equipe de reportagem sobe a serra para descobrir como vive essa gente isolada de tudo e de todos. Lá, vive-se, sobretudo, de improviso. Ronaldo, o garoto com nome de craque, joga futebol com uma bola feita de bolsas plásticas. Enrola várias. Uma nas outras, até achar o tamanho certo. Ele nunca ouviu falar dos outros Ronaldos, o Fenômeno e o Gaúcho. Mas garante ter vocação para artilheiro. Ronaldo e as outras crianças do Cafundó só vão à escola três vezes por semana, porque não agüentam subir e descer a serra os cinco dias completos.

O progresso esqueceu de chegar à terra do nada, lugar onde antigamente é um tempo que não passou. No sofrimento e na resignação. Benedita Gomes de Souza, 29 anos, mãe de cinco filhos, cumpre sua sina sem reclamar demais. “O mesmo choro de fome do meu filho foi o que eu chorei. Eu passei o que a minha mãe passou. E a gente passa tudo isso porque Deus quer”, diz, como se destino fosse herança. Na casa de Benedita só tem feijão para comer. Sem farinha, sem arroz e, principalmente, sem mistura, como o povo mais simples costuma chamar o pedaço de carne. A saga de Benedita e de outra família do Cafundó vai parar no cinema. Foi filmada pelo diretor José Padilha, no documentário Garapa, que mostra o drama do Brasil que tem fome.

O mundo restrito da serra ficou ainda menor para Francisco Gomes de Souza, 55, que sofre de anemia grave. Suas pernas endureceram, ele não foi ao médico e terminou paralítico. Há um ano, sua vida se resume a uma rede. É lá que ele passa todas as horas do dia. Faz ali mesmo suas necessidades fisiológicas e tenta espantar a tristeza que sempre encosta, quando pensa na vida que leva. A esposa Zilda Pereira da Silva, uma senhora de 62 anos, arrasta-se pelo chão para cozinhar no fogão a lenha cavado num canto da sala. Ela prefere cozinhar sentada porque as pernas já estão cansadas demais. Vê-la se movimentando pelo chão de barro batido faz lembrar a coreografia dos homens-caranguejo, agachados na lama do mangue, rastejando atrás de alimentos.

Emanuel Gomes de Souza, 88, nascido e criado no Cafundó, também passa o dia na rede, olhando o infinito pela porta do barraco. Vez ou outra fica na frente de casa, para pegar um pouco de sol nos ossos. Ele e a mulher, Francisca Pereira da Silva, 90, são os moradores mais velhos do Cafundó. Com a aposentadoria, sustentam filhos e netos. Só deixam a serra uma vez por ano, quando precisam ir até a cidade provar ao INSS que estão vivos. Descem e sobem na rede, carregada por filhos e netos que, quando ficarem velhos, também serão levados da mesma forma. No Cafundó é assim. O ponteiro do relógio parou no tempo da miséria e se recusa a passar.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

5 + 4 =