"A solução para a fome está nas mãos das vítimas"


Mudança climática, petróleo caro, produção de biocombustível, desmatamento, expulsão de povos tradicionais de suas terras, aumento do preço dos alimentos. Todos esses fatores estão relacionados à atual crise mundial de fome. Essa é a opinião do brasileiro Flávio Valente, secretário-geral da Fian Internacional, uma organização de direitos humanos que luta pelo direito à alimentação. Valente esteve em Amsterdã para participar de um debate sobre o futuro da segurança alimentar e deu uma entrevista à Radio Nederland.

Flávio Valente: "Sem dúvida nenhuma, a crise mais recente tem muito a ver
com a proposta dos Estados Unidos de aumentar a quantidade de álcool na
gasolina, na tentativa de reduzir a utilização de petróleo, e da decisão da
União Européia de pensar em aumentar a cota."

"Só a decisão de pensar em aumentar a cota do uso de biocombustíveis
provocou um enorme avanço da compra de terras, especialmente das
multinacionais em todos os países do mundo, principalmente nos países do
sul, que é onde existem terras que estão aparentemente livres. Na verdade
essas terras não estão livres. São terras de indígenas, de afrodescendentes,
ocupadas por populações tradicionais há centenas de anos."

Biocombustíveis na Europa
Na semana passada, a Comissão de Indústria e Energia do parlamento europeu
aprovou um projeto de lei que aumenta para cinco por cento o uso dos
biocombustíveis pelo setor de transportes no bloco em 2015, aumentando para
10% em 2020.

Flávio Valente, secretário-geral da Fian
Internacional, atua há quinze anos como
defensor de Direitos Humanos. Foi relator
nacional de Direitos Humanos no Brasil e
secretário-geral do Fórum Brasileiro de
Segurança Alimentar.
Foto: Eric Beauchemin

O projeto de lei, que deve ser votado no início de outubro pelo parlamento
europeu, reduziu a meta estipulada no início desse ano, de 10%, por causa da
crescente polêmica na Europa sobre os possíveis impactos negativos dos
chamados biocombustíveis por contribuírem para o desmatamento, a alta do
preço dos alimentos e a disputa por terras. O que significa essa medida
européia do ponto de vista alimentar?

Flávio Valente: "Do ponto de vista do direito humano à alimentação e da
segurança alimentar foi uma vitória ter conseguido reduzir a meta de dez
para cinco por cento. Mas ficamos preocupados com o possível impacto, para a
questão da segurança alimentar e das condições de trabalho no campo e da
demanda por terra em vários países".

Com o aumento dos preços de alimentos, cem milhões de pessoas passaram a
viver abaixo da linha da pobreza no planeta, segundo estimativas do Banco
Mundial. A comunidade internacional descreve a alta dos preços de petróleo e
dos alimentos como causadores da primeira crise econômica real da
globalização. Quem ganha e quem perde com essa situação?

Flávio Valente: "As grandes produtoras de alimentos, como a Bunge e a
Cargill aumentaram seus lucros. Certamente os especuladores da bolsa de
futuro tiveram um lucro bem grande com os alimentos. Os mais afetados são os
pequenos produtores que não produzem todos os seus alimentos e precisam
comprar mais caro e não conseguem comprar tudo o que precisam. Os sem terra
também são afetados. E ainda a população das cidades, onde se registrou o
maior aumento da fome nesse um ano e meio."

Fome nas cidades
Na opinião de Flávio Valente, a crise de fome só preocupou a comunidade
internacional por ter afetado os moradores dos grandes centros urbanos:

"A prova que ela não se preocupou é que faz 20, 30 anos que 850 milhões de
pessoa passam fome no mundo e a comunidade internacional não conseguiu
sequer diminuir esse número. A hora que a fome começou a aparecer nas áreas
urbanas, a ameaçar os governos e fazer com que a população passasse a exigir
mudanças para garantir sua alimentação e inclusive começaram a questionar o
modelo de liberalização do comércio internacional e especialmente agrícola,
é que a comunidade internacional ficou preocupada."

Na opinião de Valente, a solução está nas mãos dos mais prejudicados. Os
pequenos agricultores podem produzir alimentos para a população mundial e de
uma maneira sustentável:

"Existe um estudo que diz que se houver um apoio institucional sobre a forma
de extensão agrícola, crédito e acesso ao mercado, os pequenos serão mais
eficientes do ponto de vista de mudança climática do que a grande produção
agrícola. Infelizmente a ONU não leva em consideração esse relatório porque
aparentemente não satisfaz o desejo do atual parceiro das Nações Unidas que
é o agronegócio."

agricultura_familiar_200.jpgEnquanto a correlação de forças não muda, a
participação popular e a pressão para a elaboração de leis que garantam os
direitos de alimentação são fundamentais para que todos no mundo possam
comer, conforme explica Flávio Valente:

"A minha experiência como relator nacional de Direitos Humanos mostra que
nenhum governo gosta de ser denunciado por estar matando crianças de fome.
Eles tentam esconder isso ao máximo, mas não gostam de ser denunciados.
Quanto mais a sociedade civil participa e se organiza, dá visibilidade aos
casos de violações dos direitos humanos e, se tais casos chegarem aos
organismos internacionais, começarão a existir mecanismos para que as
pessoas possam recorrer."

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