CRISE PARA UNS, CRISE PARA OUTROS

As faces da crise são muitas. O olhar de cada um levará a diferentes interpretações e leituras. Mais ainda, saídas e projetos de futuro dependerão das análises e percepções e da capacidade individual e coletiva de buscar e construir novos caminhos, uma nova sociedade, um outro projeto de desenvolvimento.

As faces da crise são muitas. O olhar de cada um levará a diferentes interpretações e leituras. Mais ainda, saídas e projetos de futuro dependerão das análises e percepções e da capacidade individual e coletiva de buscar e construir novos caminhos, uma nova sociedade, um outro projeto de desenvolvimento.

A crise é séria. Como toda crise, pode abrir oportunidades, sabendo-se aproveitá-las. Um conhecimento de todas as suas variantes é indispensável, seja no campo econômico, no social, no cultural, nos valores que traduz.

O que, por exemplo, está acontecendo nos Estados Unidos? Quase sempre as notícias e as manchetes falam da Bolsa de Valores, da quebra dos bancos e financeiras e montadoras. Só de vez em quando, aqui e ali, há noticias sobre quem está sendo mais afetado, como sempre o povo pobre e trabalhador.

As estatísticas do governo americano mostram que uma em cada nove residências é habitada por pessoas com insegurança alimentar. Usa-se o termo para se admitir, de forma menos chocante, de que se trata de famílias que chegam a passar fome. O desemprego, crescente, já atinge a marca de 22,6% em alguns casos, 3,6 milhões de pessoas ficaram sem trabalho desde dezembro de 2007, início da recessão. Estima-se que mais 2 milhões engrossarão esse número até dezembro próximo.

Os chamados ‘Centros de Carreira’, 2.492 postos federais de treinamento e oferta de emprego criados há 10 anos pelo Congresso, jamais foram tão freqüentados como nos últimos meses. Estão sendo definidos como ‘prontos-socorros’ da economia americana. Segundo Lawrend Mishel, presidente do Economic Policy Institute, um centro de pesquisas econômicas de Washington, “o que estamos vendo é um show de horror!” (O Globo, 15.02.09).

Cerca de 40 milhões de pessoas nos EUA não têm o suficiente para comer. O número de americanos sobrevivendo graças a cupons alimentares distribuídos – espécie de Bolsa Família – já ultrapassou os 30 milhões. Trata-se de um cartão eletrônico para ser usado unicamente em supermercados e armazéns. Para ter direito, o chefe de família precisa ter uma renda abaixo do equivalente a 130% do índice federal de pobreza (pouco menos de US$ 2.300 mensais para uma família de quatro pessoas). Como o cartão compra cada vez menos, não cobrindo a dieta básica estipulada pelo Departamento de Agricultura para uma família de 4 pessoas, muitas pessoas vão também aos centros de caridade que servem refeições diárias. A procura aumentou 20% nas áreas mais ricas e 40% nas mais pobres.

O aperto está atingindo em cheio também a classe média. Quem ainda conserva o emprego é obrigado e fazer bicos para manter a renda, um dos quais é o de bater de porta em porta para cobrar hipotecas atrasadas, o que é altamente constrangedor.

Segundo a reportagem de O Globo, “a primeira reação costuma ser de espanto, seguida de uma pergunta: como é que os cidadãos do país mais rico do mundo podem chegar a um nível financeiro tão desesperador? Em seguida, surge entre eles próprios a segunda reação: lamentar-se com uma dose de constrangimento misturada à outra de vergonha”.

No Brasil, onde a crise ainda não bateu de maneira tão incisiva, é interessante verificar como setores da população estão enfrentando suas conseqüências. Valho-me da coluna social da jornalista Mônica Bergamo (FSP, Ilustrada, 08.02.09), que reuniu em um bar 4 mulheres de investidores de São Paulo, que, na entrevista, contaram “os efeitos da quebradeira em seu relacionamento conjugal”.

À pergunta, ‘como seus maridos e namorados reagiram à crise’, uma respondeu: “Meu marido, que fala pelos cotovelos, ficou mudo. Com um agravante; ele perdeu o ânimo. A gente parou de sair. Ele perdeu a alegria. Nas férias,a gente viajou pra dentro do Brasil. Foi um lugarzinho bárbaro em Santa Catarina. Foi mais pra não gastar”. Alguém interrompeu: “Pra não gastar em dólar, né?” Outra: “O meu começou a tomar remedinho para dormir, apareceram alguns cabelos brancos.” Uma terceira: “Temos uma regra em casa. Tudo pode faltar, menos a babá”. A quarta: “Amigas, nossas histórias são café pequeno perto de outras. Tenho uma conhecida que a vida do marido acabou. Ele perdeu dinheiro aplicado da família inteira. Da irmã milionária, do irmão triliardário. Esse cara é mais velho, daquela fase que os nossos meninos não pegaram, em que um cara, com 30 anos, já tinha feito US$ 2 milhões.”

E assim vão os comentários: “A coisa mais comum nesse meio é ouvir: Como assim, você vai ter um filho antes de fazer o primeiro milhão de dólares?”; “O que mudou foram os planos de comprar uma casa no campo, fazer uma megaviagem pra St. Barths, pra Europa”; “Ele ama vinho. Tem duas adegas, que deram uma boa esvaziada. E, no auge, ele não repôs”; “Ele dizia: ‘Você não sabe como eu tô pobre!’; “90% do mercado financeiro faz pólo. Na crise, meu marido não jogou nenhuma vez. Custa uma fortuna. Tem que ter 7 cavalos. Então, nessas sutilezas é que você sente a crise.”; “É cada coisa louca. A gente ficava imaginando vender o carro e ter que andar num ‘Unozinho’, sei lá, vender a casa, sabe quando você começa a pensar? Vender a mãe pra recuperar o que eu perdi e investir…”.

O país mais rico do mundo é obrigado a garantir um Bolsa Família para dar de comer a quem tem fome. País que nas últimas décadas ou século se alimentou da fome dos outros e do mundo. País que fez e faz guerras uma atrás da outra, para sustentar seu poderio militar e segurar sua economia baseada na indústria armamentícia e no dólar fictício. País, igual à Roma antiga ou a tantos outros Impérios, que fez e legitimou ditaduras latino-americanas porque lhe convinha, ele um país supostamente democrático. País que, através do Consenso de Washington, fez morrer de fome milhares, milhões mundo afora com suas políticas de Estado Mínimo, mais mercado e políticas sociais compensatórias.
No Brasil, nessas ‘sutilezas’, a pessoa é capaz, passa-lhe pela cabeça até’ vender a mãe’… E não passa pela cabeça descer do pedestal, olhar o mundo ao redor, saber que milhões sequer têm um salário mí
nimo mensal que mal garante o feijão e o arroz, saber que outros tantos fazem bicos para poder pegar um ônibus o dia seguinte ou colocar o filho na escola. Os novos ricos do neoliberalismo não enxergam os outros, não sabem do mundo e das coisas da vida. Só eles existem e seus milhões, só eles e seus vinhos na adega, seus cruzeiros na mídia, seus cavalos de raça nas revistas de moda.

Por isso tudo, a crise é oportunidade de descontaminação, inclusive nos meios populares e em suas organizações, também muitas vezes poluídos pela disputa de poder e pelo uso de meios e métodos corruptos e antidemocráticos. A crise varre velhos e combalidos valores e abre espaço para novas formas de convivência, aprendizados de fazer solidário, de viver com o que se tem para comer todo dia, de ser simples, de ser amigo e companheiro, de reconhecer a natureza como servidora do homem e da mulher e ele/ela servidoras da natureza, de defender e construir uma nova economia, com novas formas e valores de produção.

Não há outra alternativa senão revestir-se de igualdade e compromisso com ‘o outro mundo possível’. Como diz a Campanha da Fraternidade deste ano, a paz será fruto da justiça.

Selvino Heck
Assessor Especial do Presidente da República

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

2 + 7 =