NationalPost

O Tempo urge (e ruge)

NationalPost

Faixa de protesto:

Artigo de Selvino Heck onde analisa a crise econômica européia a partir do caso da “boa aluna neoliberal” Irlanda, um dos países mais afetados, e a atual inversão de posições no tabuleiro global dos projetos e nações.

“Fuga do Eldorado – a rota inversa da fortuna” é o título da principal matéria econômica de O Globo de 14 de novembro: “Crise econômica leva cada vez mais europeus a emigrarem em busca de uma vida melhor. De ímã para milhares e milhares de pessoas que anualmente enfrentam perigosas travessias marítimas ou cruzam clandestinamente suas fronteiras em busca de uma vida melhor, a Europa viu o quadro se inverter nos últimos anos. O continente está agora exportando seus cidadãos. Eles vão para outros países da Europa, mas também para a África e a América Latina, numa verdadeira fuga de cérebros, que tomam muitas vezes o caminho inverso dos imigrantes mais pobres.”

Na Irlanda, um dos países mais afetados pela crise, as estimativas são de que, entre 2009 e 2011, o país, de pouco mais de 4 milhões de habitantes, perderá 200 mil pessoas, 5% de sua população. Em apenas cinco anos, a taxa de desemprego passou de 3% para 13,5%. Uma a cada 3 pessoas com menos de 30 anos está desempregada. Segundo especialistas, a taxa de desemprego poderia ser de quase 20%, não houvesse a emigração. O país está exportando desemprego: 20 mil pessoas em 2009, 70 mil em 2010, para 2011 a perspectiva é de 120 mil irlandeses deixando seu país.

O quadro irlandês é o seguinte. Ruas inteiras desertas, bairros fantasma, apartamentos e casas abandonadas, milhares de trabalhadores desempregados. É o resultado da bolha imobiliária. Há 300 mil casas vazias no país, mais cem mil irlandeses renegociam suas dívidas. Hoje, não há um único quarteirão onde não se vê placas de ‘vende-se’ e anúncios de leilão de casas tomadas por bancos de seus proprietários, por falta de capacidade de pagamento.

Centenas de brasileiros que migraram para a Irlanda em busca de oportunidade são forçados pela crise a voltar para casa. “Como todas as obras do país estão paradas, não há trabalho. A única solução é voltar ao Brasil e é isso que decidimos fazer. Aqui a situação está muito difícil. O que o Brasil era nos anos 80, a Irlanda é hoje”, diz Daniela Maria de Araújo.

O trágico ou irônico desta história é que a Irlanda foi o melhor aluno de um sistema que pregava a abertura dos mercados e desregulamentação neoliberal. Por uma década, teve uma das mais altas taxas de crescimento da Europa, atraiu investimentos de alta tecnologia e passou a ser um respeitado exportador. Hoje, economistas, políticos e meros cidadãos reconhecem que o Tigre Celta, como era chamado, pode ter sido apenas de papel (Estadão, Economia, 14.11.10, B14).

O país caminha para abrir uma década de austeridade. Desde 2008, já perdeu 13% de seu Produto Interno Bruto (PIB). Nova queda deverá acontecer em 2011. E não foi por falta de medidas econômicas de enfrentamento da crise, sempre medidas neoliberais. A Irlanda foi o primeiro país europeu, em 2008, a anunciar cortes de seus gastos públicos. Funcionários públicos tiveram seus salários reduzidos em 14%, benefícios sociais foram reduzidos para desempregados e família, enquanto os impostos aumentaram. Houve um corte nos gastos públicos da ordem de 7,5%. Ou seja, o povo trabalhador pagou o pato.

As conseqüências, gravíssimas, são pelo menos duas. Diz o Diretor da Associação de Pequenas e Médias Empresas da Irlanda, Mark Fielding: “Estamos vivendo a pior crise econômica de nossas memórias. Uma geração inteira será perdida se o governo não transformar a questão do desemprego em uma prioridade nacional, e não os bancos.” Já na Itália, Píer Luigi Celli, Diretor da Universidade Luiss, a universidade privada mais importante de Roma, escreveu uma carta aberta a seu filho Mattia, de 24 anos, no ‘La Repubblica: “Este país, o seu país, não é mais um lugar onde viver com orgulho. Por isso, com o coração que sofre mais do que nunca, o meu conselho é que você, ao terminar os estudos, vá para o exterior. Vá para um lugar onde a lealdade, o respeito, o reconhecimento do mérito e dos resultados tenham ainda valor.” Para muitos jovens italianos, a terra prometida está em qualquer lugar, não em sua pátria.

Esta era a realidade européia do século XVIII, quando milhares de irlandeses foram aos Estados Unidos, Inglaterra e Canadá, e do XIX, quando outros tantos de italianos, alemães, poloneses vieram para o Brasil e outros países. Repete-se agora, 2010, século XXI, terceiro milênio, quando se vendeu um mundo de prosperidade sem limites, de lucro fácil, numa corrida ao ouro, ao dólar, ao euro e ao yen, que pareciam estar a mão de qualquer um em qualquer esquina.

Vendeu-se a discurso fácil o lucro desmedido, a ganância, o esbanjamento, o enriquecimento e o luxo. Sobrou o desemprego, o individualismo, a corrupção, o vazio e a desesperança.

O mundo hoje vê que é preciso tomar um outro e novo caminho. Um caminho não predador da natureza, um caminho da simplicidade, um caminho do fazer solidário e coletivo, um caminho do viver bem dos aimaras, quétchuas e guaranis.

E é um caminho também de luta, como têm mostrado os franceses e outros, que resistem à imposição do capital e do Estado conservador. Como escreveu Luís Fernando Veríssimo (Zero Hora, 15.11.10): “Como em outros países da Europa, a reação violenta à austeridade até na Inglaterra vem do fato de que, como nunca aconteceu antes, o povo está sendo obrigado a pagar por uma crise com origem conhecida e vilões indiscutíveis, o capital financeiro desregulado, que se lambuzou o que pôde e deixou os pratos para os outros lavarem.”

Falou e disse. Hora de acordar do pesadelo e voltar a acreditar no sonho e na utopia.

Selvino Heck
Assessor Especial do Gabinete do Presidente da República
Em dezoito de novembro de dois e dez

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

2 + 3 =