Está se aproximando o Dia Internacional de Luta Pela Eliminação da Discriminação Racial e, não tão próximo como o 21 de março, também se aproximam as eleições. Resolvi, então, propor uma reflexão.
Atualmente as Forças Armadas Brasileiras estão no Haiti comandando a missão de pacificar um povo que se rebela contra a sua condição de miséria. É o governo brasileiro comandando a opressão contra o Haiti. Haiti: o primeiro país no mundo a por fim à escravidão de africanas e africanos. Brasil: o ultimo país do mundo a abolir o sistema escravista. Esse é mesmo um Estado comprometido com a opressão. Como uma colônia francesa, o Haiti sofria influencia de tudo que acontecia na França, inclusive a revolução. As tais “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” foram entendidas e almejadas pelos escravos daquela ilha, que, sem ter representantes em parlamento, só dispunham de suas próprias mobilização, organização e luta.
Durante mais de trezentos anos no Brasil também era assim. Os escravizados daqui também só podiam contar com a própria disposição em luta no objetivo de se libertar de seus algozes. Ao contrário do que minha geração aprendeu na escola nossos ancestrais escravizados não foram passivos. Durante os quase quatrocentos anos de escravismo no Brasil, esses africanos e africanas se rebelavam das mais variadas formas possíveis. Porém, essa tensão não teve a mesma intensidade durante todo o período escravista.
O Século XIX começou com o mundo tendo que reconhecer a independência do Haiti, a primeira república preta do planeta. Nem o poderoso exército napoleônico, que enxotou D. João VI de Portugal pra o Brasil, conseguiu sufocar a revolta dos negros e negras daquela ilha. Que efeito o episódio da revolução haitiana teve nas colônias européias espalhadas pelas Américas? O que se passava pelas cabeças dos brancos num país como o Brasil, que foi o país que mais importou africanos e africanas para a escravidão? Com a maior população preta fora do continente africano (em 1844 o Rio de janeiro era a cidade mais africana das Américas) o Brasil se tornou um terreno hostil à sua classe dominante, que via com todo temor a possibilidade de se repetir aqui o que ocorreu na antiga colônia francesa do Caribe.
Esse temor virou pânico quando em 1835 estoura na Bahia a Revolta dos Malês. Quando se acreditava na inferioridade intelectual do nosso povo, negras e negros muçulmanos daquela província se lançaram numa revolta que foi cuidadosamente preparada com meses de antecedência. A preocupação do povo branco foi maior ainda ao descobrirem que aquela revolta tão bem organizada só foi possível porque aqueles negros e negras dominavam a escrita árabe, ao contrário da maioria dos brancos que era de analfabetos. É nesse momento que surge o termo “haitianismo”, relacionando qualquer ato ou mesmo possibilidade de rebeldia africana no Brasil, com a revolução que pôs fim ao domínio branco no Haiti. Talvez a Revolta dos Malês não teria sido derrotada se não tivesse sido delatada pouco antes de sua erupção. Quantas revoltas como essa não estariam em gestação pelo país? Se outras estourassem sem que fossem delatadas a tempo de neutralizá-las, o que aconteceria? Afinal, o ódio ao escravismo e o contingente de africanos eram enormes o suficiente para uma revolta triunfante do povo negro.
Realizada a sua revolução industrial, a Inglaterra, a “dona do mundo” da vez, passou a combater a escravidão pelo planeta. Mesmo que os senhores de escravos no Brasil estivessem dispostos a resistir, pelo sim, pelo não, medidas foram adotadas para garantir uma abolição gradual, sem sustos, sem “haitianismo”. Na Câmara e no Senado, liberais e conservadores travavam uma batalha pela abolição e conservação do escravismo. Como a lei que “extinguia” a importação de africanos/as era um lei pra inglês ver, foi aprovada em 1850 uma outra pra abolir de vez o que se chamava de tráfico negreiro. Mesmo com o contrabando corrente, a lei Euzébio de Queiroz abalou de certa forma o escravismo no país. A cada novo projeto de lei, uma nova batalha entre liberais e conservadores. E esses projetos tratavam da abolição dos castigos físicos, emancipação dos filhos/as de mães escravas, o direito aos escravos de comprar sua alforria, libertação dos escravos pertencentes ao governo, proibição do trabalho escravo nas cidades, a proibição de se desfazer famílias de escravos no “tráfico” interno, libertação de escravos com mais de sessenta anos… Entre outros. Não por acaso e nem coincidência, esse foi o período de menor incidência das lutas dos escravos. A possibilidade de se acabar com o escravismo pelas vias institucionais enchia de esperanças e acalmava os ânimos dos escravizados. Isso garantiu que, de fato, o escravismo no Brasil fosse abolido e que, além de todo poder político e econômico permanecendo intacto nas mãos da minoria branca, o povo preto fosse condenado à marginalidade do novo modelo de organização societária que surgia a partir de então. Se hoje somos cidadãos de ultima classe, é graças à abolição que as instituições do Estado executaram (algo bem parecido aconteceu na África do Sul quando o partido de Nelson Mandela fechou um acordo com as elites brancas abolindo o apartheid, mas manteve essas elites no poder político e econômico, e garantiu a impunidade dos assassinos e torturadores do velho regime).
Até que o povo preto entendesse de vez que essa “nova” sociedade “não era pra ele”, e que ele voltasse a se organizar, levou algum tempo. Em 1931 (mais de 40 anos depois da Lei Áurea) é que foi fundada a Frente Negra Brasileira (FNB). A Frente reunia diversas organizações do movimento negro por alguns estados. Com forte caráter social e recreativo, dedicou muito do seu tempo e força a “conquistar posições para o negro em todos os setores da vida brasileira”. Para tanto organizou seus departamentos esportivo, musical, feminino, educacional, de instrução moral e cívica etc. De tão reacionária que era se aproximou da Ação Integralista Brasileira. Tanto foi, que esta reinvidica pra seus quadros alguns membros destacados da Frente Negra como Abdias do Nascimento e João Cândido. Deus, Pátria, Raça e Família e Deus Pátria e Família, eram os lemas da FNB e Ação Integralista, respectivamente. A FNB sobreviveu por mais de cinco anos como articulação de entidades negras. Pretendendo o jogo eleitoral ela acabou virando um partido. Como em 1937 o ditador Getulio Vargas extinguiu todos os partidos, a FNB não resistiu ao golpe. Ela não sobreviveu nem mais como simples organização social-recreativa. Morreu! Considero emblemática a história da Frente Negra Brasileira, pois nos mostra que as instituições desse Estado racista nos são nocivas até quando o nosso povo se organiza pela direita.
Recentemente, com importante colaboração de pretas e pretos parasitas abrigados/as no corpo do Estado, foi lançado o Estatuto da (des)Igualdade Racial, que, por seu conteúdo rebaixado, desagradou até as organizações e militantes negros mais recuados.
O Estado é o organismo de dominação de uma classe sobre outra. Os poucos espaços que nos permitem ocupar nele existem somente pra dar a ele uma aparência de neutralidade. Pensar que se pode mudar o caráter do Estado burguês por dentro dele próprio é tão ingênuo quanto acreditar que se pode transformar a Rede Globo aceitando dela um papel no programa Malhação. O Estado é um fato e sua existência independe da nossa vontade, eu sei. Por isso precisamos estar unidos, organizados e em luta permanente para pressioná-lo rumo às nossas conquistas parciais/imediatas, até a “luta final”, e não nos dispersarmos em disputas eleitoreiras que nos contemplarão, no máximo, com algumas concessões.
Não sabemos se
hoje teríamos uma nação justa sem a dominação de uma classe sobre a outra, de uma raça sobre as outras, de um gênero sobre o outro caso aqui tivesse acontecido uma revolução negra ao invés da lei Áurea. Certeza só temos é de que a abolição realizada pelas instituições do Estado serviu para manter o povo preto no patamar mais baixo da sociedade.
Em Ngola Janga (também conhecida como Quilombo dos Palmares), maior símbolo da resistência preta brasileira, a traição era punida com morte. Por isso, seu líder Ganga Zumba foi assassinado ao trair o povo palmarino trocando a resistência por acordos com o Estado. E em seu lugar assumiu Zumbi, conhecido internacionalmente por comandar a resistência intransigente do povo de Ngola Janga. Não proponho que matemos os que trocam a nossa luta das ruas pela luta das urnas, mas cabe a nós pelo menos negar-lhes nossos votos, a eles e a todos que nos peçam.
Contra a democracia burguesa, só a revolução socialista.
Gas-PA (Coletivo de Hip Hop LUTARMADA e RECID-RJ)