As duas faces da capital do Fome Zero

Se houvesse um mapa político da fome no Brasil, Guaribas estaria no seu epicentro. O município no Sertão do Piauí, marco inicial do Programa Fome Zero, parece mais uma cidade-laboratório do governo federal. A vida ali se move em função do Bolsa-Família e dos R$ 82 mil que o programa deposita todo mês no bolso de uma gente que depende de ajuda oficial para comer.

Se houvesse um mapa político da fome no Brasil, Guaribas estaria no seu epicentro. O município no Sertão do Piauí, marco inicial do Programa Fome Zero, parece mais uma cidade-laboratório do governo federal. A vida ali se move em função do Bolsa-Família e dos R$ 82 mil que o programa deposita todo mês no bolso de uma gente que depende de ajuda oficial para comer. A cidade se divide entre os que têm e os que sonham ter o cartão. Ela própria só passou a existir para o País, em 2003, ao virar vitrine do maior projeto de combate à fome lançado pelo recém-eleito presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A descoberta mudou a cara do município, mas não o livrou do fantasma da fome.

Existe hoje uma Guaribas dentro de Guaribas. A cidade ganhou o primeiro salão de beleza, a primeira padaria, ruas foram calçadas e, o mais revolucionário de tudo, a água agora sai das torneiras. Bem diferente da época em que as mulheres passavam a noite e a madrugada disputando, muitas vezes à tapa, um balde d’água. Mas a mudança não chegou para todos. Em algumas áreas, sobretudo na zona rural, o atraso e a miséria permanecem iguais ao tempo em que os quase cinco mil moradores viviam esquecidos do poder público.

É um povo que continua vivendo do milagre de Deus. Porque dos homens se espera muito pouco. Salvador Pereira Dias, 26 anos, não entende porque, mesmo passando fome, sua família não foi “abençoada” com o cartão do Bolsa-Família. Ele está há mais de um mês sem conseguir um dia de serviço. “Foram esquecer logo da gente? Só pode ser castigo”, diz, num desconsolo de quem fala em nome da barriga, e não da razão.

Basta ver o filho mais novo mamando para entender o desespero de Salvador. Domingas da Rocha Alves Dias, 25, a mãe, é mais osso do que carne. Do peito quase não sai leite. Nem poderia. Sem nenhum tipo de renda, a família só come pela caridade de um e de outro. No dia em que a reportagem esteve na casa de Salvador, o que ele tinha conseguido para almoçar era arroz com jerimum. Mas para a noite não havia nada. A agente de saúde que acompanha o JC diz que, meses atrás, um dos três filhos de Salvador estava comendo terra. E explica que isso é comum quando o organismo padece da falta de ferro. Salvador nega, diz que é um bom pai e cuida bem dos filhos, como se fosse culpa sua não ter o que comer.

No livro Geografia da fome, Josué de Castro escreve que “nenhum país do mundo se prestaria, tanto quanto o nosso, para funcionar como um verdadeiro laboratório de pesquisa social do problema da fome”. Já nos caminhos da miséria pelo Nordeste, nenhuma cidade expõe tão bem como Guaribas o dilema existencial enfrentado pelos programas que se pretendem aplacar o sofrimento de gente como Salvador: ser ou não assistencialista? A estudante de sociologia Milena Souza, moradora da cidade, está fazendo uma tese que tenta encontrar algumas respostas para a questão. Ao estudar o impacto do Bolsa-Família em Guaribas, ela diz que a vida melhorou, mas o povo ficou dependente da ajuda do governo. “Se tirar o cartão, a cidade afunda. Volta a ser a miséria de antes.”

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