Vassalos do eterno domínio do canavial

De tudo que se podia germinar nos poucos metros de quintal, seu José escolheu em Primavera, Zona da Mata pernambucana, apenas uma planta: cana-de-açúcar, um solitário pé de cana-de-açúcar.

De tudo que se podia germinar nos poucos metros de quintal, seu José escolheu em Primavera, Zona da Mata pernambucana, apenas uma planta: cana-de-açúcar, um solitário pé de cana-de-açúcar. Existe um fatalismo subliminar ao plantio aparentemente involuntário de seu José. Para ele e tantos outros, a cana está no começo e no fim do ciclo, é dela que se nasce, só com ela se vive e é nela que se morre. O que muitos chamam de resignação, seu José poderia explicar, ainda que sem palavras, como a herança determinista que há séculos recobre o Nordeste medieval, dos grandes feudos de açúcar, onde vassalos para sempre serão vassalos, onde a terra para sempre será cana. Apenas grandes revoluções conseguiram derrubar sistemas consolidados como esse. Mas José Ferreira de Oliveira é tão vitimado pela monocultura quanto o solo é refém da cana. Homem e terra estão erodidos e sobrevivem a despeito da adversidade. Sem revoluções.

A história de seu José não é tão distinta das dos demais Josés que passaram sua vida servindo aos canaviais. Dos 57 anos de vida, ele tem 47 de cana e é esta última conta a verdadeira medida etária da população da Zona da Mata nordestina. Desde criança até hoje, a rotina tem sido de foice na mão debaixo do sol impiedoso. Agora aposentado, ainda não se livrou do que se convencionou chamar de destino. Para completar a renda da família, ele trabalha no período de entressafra, no corte de cana para plantio de sementes e na cambitagem das mulas que sobem e descem com a carga das usinas. Para sustentar pernas e braços, seu José almoça quase todos os dias o mesmo prato: quarenta, uma receita típica da região cujos únicos ingredientes são fuba e água.

Do trabalho matinal dos morros de cana ele parte, à tarde, para um terreno próximo onde seu ofício é alimentar os bichos de outra propriedade. Bois, vacas e cavalos que comem também sempre a mesma ração: cana recheada de melaço. Na terra dos engenhos, o açúcar está encruado na carne dos bichos e dos homens. Essa monotonia alimentar, alertava Josué de Castro, provoca fomes invisíveis no trabalhador rural da Zona da Mata, abastecidos quase sempre de fuba e feijão, pobres em proteínas, porém suficientes para iludir corpos que, hoje, ganham um salário mínimo no corte de três toneladas por dia.

Filho de pais que nasceram no Agreste, seu José lembra que, quando mais novo, ainda esquálido, passava mal em todo fim de jornada. “O braço doía, eu me tremia todo”, diz, lembrando que, na falta de opções, dormia de enfado, no cansaço que sustenta o sono dos bóias-frias.

Com a idade, veio firmeza no braço e o irmão mais velho de seu José resolveu levar o rapaz de volta para o Agreste, em uma derradeira tentativa de se livrar do solo viciado da monocultura. Não deu certo. Foram dois invernos ruins, duas lavouras perdidas. Seu José fez o caminho de volta. Novamente a serviço dos latifúndios, ele não apenas retomou o trabalho no corte, como também derrubou muita madeira para limpar terreno para a cana, a mando dos “empreiteiros”, como ele chama. As árvores eram tão largas que os braços abertos de seu José não conseguem dimensionar o tamanho. Na tentativa de receber um pouco mais, ele também passou um mês na mais insalubre das atividades: jogar veneno no mato dos canaviais. Os herbicidas, que até hoje vitimam trabalhadores da cana com doenças, provocaram sintomas de intoxicação em seu José: “O veneno subia pra cabeça, dava uma queimadura, uma borbulha de suor e a vista ia embora. Às vezes, eu ficava surdo”.

Nos últimos anos, ele precisou frear os esforços. A coluna dói a dor dos anos curvados à realeza feudal da cana. “O bagaço humano do latifúndio açucareiro”, define Josué, clama por descanso. Seu José, aos 57, parece mais velho do que seu rosto demonstra. Diz que está satisfeito, que é tudo assim mesmo e que vai bem de saúde. De todas as doenças do mundo, ele só teme mesmo uma, a diabete. Que matou seu irmão e vários outros bóias-frias. Na “cultura autofágica” da cana, que devora tudo em torno de si, é do açúcar que se nasce e, muitas vezes, é dele que se morre.

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