Carta dos Movimentos componentes do Comitê Juventude Viva – Campo Limpo e M’Boi Mirim

Estávamos no lançamento do Juventude Viva em São Paulo. Uma data que queríamos comemorar, um momento que desejávamos compartilhar com aqueles que nos são caros. Com os que ouviram, viram e viveram violências das mais diversas, tortura e morte na zona sul de São Paulo. Na memória e nos corações, a marca daqueles que não estão mais entre nós. Que numa sociedade historicamente desigual e injusta, foram ceifados sob a tutela do Estado – seja por ação ou omissão.

Portanto, o momento era sério. Ninguém estava ali para brincar ou fazer piada. Com a dor alheia não se joga. Com a morte, muito menos. Mas, por aqueles que tombaram, também nos permitimos celebrar. Pois é no amor que sentimos por eles que aprendemos a valorizar a vida. E é isso que promete o plano Juventude Viva.

Nos últimos meses, pela formação do Comitê misto, temos seguido a proposta de montar em conjunto a cara do programa. Num histórico de prefeituras e secretarias que não se dispõe à escuta e muito menos a construção coletiva, hoje queremos ser palavra e ação. É da nossa natureza demandar, analisar, propor. E deve ser da natureza de um governo democrático não só dialogar com a população, como também criar espaços de gestão democrática de fato, de construção coletiva das ações. Sobretudo com o povo negro da periferia, sempre alijado dos processos “democráticos” do Estado e que hoje é destinatário número 1 do Juventude Viva.

Porém, o lançamento evidenciou para nós um descompasso. As ações futuras do Juventude Viva foram vomitadas na tela sem que antes fossemos consultados e ouvidos. O trabalho com a base não foi construído pela Secretaria que, aparentemente decidindo por nós, elencou planos e ações. Vínhamos, desde a reunião na Casa Popular de Cultura da M’boi Mirim, entendendo que se levantaria a demanda da juventude participante dos coletivos e serviços. Nossa prática é construir com. Queremos e vemos com bons olhos que a Coordenadoria de Juventude construa com. Mas, o que se evidenciou, é que a construção tem sido para nós. E não conosco, como desejamos. Ao contrário do que alardeia a prefeitura em diversos meios de comunicação, esse Plano (ainda) não foi construído com os jovens da cidade. E daí sua principal fraqueza. Sua falta. E é aí que o que é de base, o que é de chão, a nossa história, se perde no olhar de quem governa.

No lançamento, exemplos dessa ausência de diálogo não faltaram. Somos do reggae, do funk, do black, do jazz, do blues e do rap. Sim, somos também hip-hop e seus elementos. Alegra-nos ver o poeta brasiliense GOG, Negra Li e Max BO. Assim como ficaríamos felizes de ver tantos outros irmãos que entendem e cantam nossas belezas e adversidades. Mas, num evento para a Juventude em plena Zona Sul, havia tantas possibilidades de grupos jovens subirem ao palco. Há tantos com menos espaço midiático que Negra Li, tantos mais representativos da juventude negra e pobre, tantos aqui da sul. Mas optou-se pelos não jovens de outras quebradas. Importou-se o rapper de lá quando aqui havia muito para se colher e se dar. E os coletivos culturais, alguns até dentro do próprio Comitê, nem sequer foram consultados.

E daí, ficamos ressabiados com esse para mencionado anteriormente. Dissemos que a Secretaria vem construindo para e não com. Para nós, para os jovens periféricos, subentendemos. Mas na mesa, repleta de representantes dos poderes públicos constituídos, houve a presença solitária de um representante da juventude e da sociedade civil. Para quem, então? O que há de híbrido, o que há de paritário quando, outra vez, se diminui a nossa voz? Talvez, nesse contexto todo, tenha sido muito significativa a ação dos jovens que tomaram “de assalto” o microfone. Quebrou-se a ordem e o protocolo para que, curiosamente, a juventude pudesse participar do lançamento de seu plano. Aquele que carrega o seu nome. Foi preciso uma invasão para a juventude se fazer escutar. Sem pedir licença, trouxeram o respiro necessário ao evento. Mas será, então, que os jovens vêm sendo respeitados em sua integralidade? Dentro desse plano? É algo que precisamos questionar.

E o que dizer de um plano que busca a redução da morte de jovens negros na periferia, mas que não menciona suas ações contra a violenta polícia militar? O Governo Estadual não participa e não apóia o Juventude Viva, mas essa omissão, como num acordo de cavalheiros, nunca é mencionada. O próprio prefeito Fernando Haddad ressalta a inaceitável violência contra jovens na periferia de São Paulo e a descreve com endêmica e alarmante. 25 mortes por 100 mil em alguns locais, ele nos diz. Acreditamos que são precisas ações intersetoriais que impactem verdadeiramente o território e fortaleçam a juventude no sentido de emancipá-la e não de mantê-la refém. Isso pressupõe, para nós, que o impacto no território só terá efeito se forem ouvidos os seus envolvidos. O impacto será ver o atendimento humanizado nos hospitais e nas unidades de saúde, o atendimento pleno e digno pela assistência social, a força e o espaço do aluno na escola, a eliminação da tortura nas unidades da Fundação Casa. Mas, ressalta-se, para isso é preciso ouvir e dialogar. Pois, do contrário, o plano começa natimorto.

E é justamente por acreditarmos nos espaços de articulação política da Sociedade Civil, nos movimentos sociais e nas possibilidades que se colocam que nos apresentamos nesse Comitê com nossa crítica e fala. Não queremos ser usados por um plano que nos carregue no seu bojo, mas queremos conjuntamente alavancá-lo com nossas pernas e bocas. Todavia, se o futuro for o reflexo do que se viu em 25 de outubro, pouco conquistaremos.

Valorizamos o Juventude Viva como uma demanda da juventude negra periférica e não queremos seu fim. Justamente o contrário. Porém, para que ele seja vivo de fato, deve ser ampliado, qualificado, coletivizado. Esta é uma possibilidade não só de pautar e valorizar o tema juventude no governo, como também ampliar e fortalecer os espaços de gestão democrática das políticas sociais chamando a população jovem, sempre vista como objeto das ações, como um sujeito político para avaliar e monitorar o que já existe, bem como construir propostas novas conectadas com seus reais interesses e necessidades. E, para isso, além do diálogo, é preciso também transparência. Se hoje há milhões de reais em jogo dentro do orçamento municipal e federal, queremos saber exatamente em que lugar serão gastos, em que prazo, por quanto tempo, para quais ações.

Não podemos esquecer ainda do apoio às vítimas e familiares, da necessidade de se extinguir a operação delegada, do necessário fortalecimento aos serviços de medidas socioeducativas em meio aberto e dos centros de juventude, da criação de canais de denúncia, entre outros. Aspectos esses que mencionamos nessas curtas linhas, mas cuja concretização deve necessariamente passar pela construção junto à sociedade civil e favorecer o fortalecimento das redes, frentes, organizações e grupos locais que há muito tempo já atuam com a juventude. Portanto, importante que desse montante haja repasse de recursos para que a sociedade civil se organize para trabalhar com o enfrentamento da mortalidade de jovens nas nossas ruas e vielas, bairros e quebradas.

Enfim, ainda com esperanças e expectativas aqui estamos. Esperamos não ter de tomar “de assalto” o microfone para sermos ouvidos. Nessa gestão municipal, nessa coordenadoria de juventude, exigimos o diálogo prometido e divulgado. Diálogo base para qualquer ação. Diálogo com transparência e fortalecimento dos movimentos. Com paridade e valorização do território. Pela vida da nossa juventude.

 

 

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