“Sem luta, não tem solução”

“Não temos saída, senão canalizarmos os poucos recursos que temos para ajudar a organizar a população brasileira mais pobre elevando seu grau de organização e o seu grau de consciência”. Este é um trecho da entrevista com Eliane de Moura Martins, uma das coordenadoras da Rede de Educação Cidadã, que você acompanha na íntegra, a seguir:

Fruto de seu trabalho como militante do Movimento dos Trabalhadores Desempregados e de outras lutas, Eliane de Moura Martins, 32 anos, há três anos recebeu o convite de Frei Betto, então assessor da Presidência da República, para compor a Equipe de Mobilização Social e Educação Cidadã, conhecida também como Talher. Natural de Panambi, interior do Rio Grande do Sul, ela que é uma das coordenadoras da Equipe Nacional do Talher concedeu, no intervalo de uma Oficina de Oratória, em Curitiba-PR, um entrevista ao site da Rede de Educação Cidadã. Eliane ressalta a importância do trabalho de base e da formação da militância em contraposição ao ativismo. “Nós ficamos muito presos ao ativismo e não conseguimos nos organizar, logo a gente não consegue intervir e ter posições claras sobre as coisas”, disse. Eliane acredita que a luta de classes nunca esteve tão viva e que a classe dominante, a quem não faz nenhuma concessão, nunca esteve tão forte. “A classe dominante em momento algum vai abrir mão dos seus privilégios. Sem luta, não tem solução”, afirmou. Acompanhe, a seguir, a íntegra da entrevista.

REDE – Quais os desafios e os objetivos colocados para a rede em 2006?

Eliane – A Rede de Educação Popular foi chamada de educação cidadã, num primeiro momento, porque nos corredores palacianos os termos “popular”, “trabalho com o povo” e “trabalho de base” não são bem-vindos. O Frei Betto, numa tática de não criar conflitos desnecessários lá dentro, acabou chamando assim. E hoje nós já estamos dando pouco valor aos corredores e assumindo mesmo que é uma Rede de Educação Popular. Isso também já caracteriza os seus objetivos. Nós estamos numa quadra histórica muito complexa, um momento conjuntural muito difícil, no qual estamos vivendo uma ofensiva muito grande do capitalismo – em crise interna do próprio sistema – em que hoje engole os menores. Estamos vivendo a fase dos grandes conglomerados, das grandes mega-empresas que vão engolindo as pequenas. Se eles estão se engolindo entre eles, imagina os efeitos no povo, nos mais pobres. Estamos vivendo uma crise muito dura, onde um terço da população brasileira não tem espaço no processo produtivo da riqueza. Da mesma forma está a natureza: as águas e a terra. O meio ambiente, de modo geral, está sendo dizimado por conta de resolver a crise do capital. Não interessa que a metade sul do Rio Grande do Sul esteja demolida pelo capitalismo. Interessa que a Votorantim precisa resolver seu problema de mercado de produção, então ela vai fazer isso e ponto final. Nossa compreensão e a nossa simples contribuição a uma leitura progressista de esquerda é a de que nesse modelo não tem saída para nós, senão canalizarmos os poucos recursos que temos para ajudar a organizar a população brasileira mais pobre elevando seu grau de organização e o seu grau de consciência. O nosso objetivo principal é este. Não é fazer propaganda do Governo Federal, não é fazer propaganda do Fome Zero, até porque ele está muito enfraquecido. Não é a gente vender ilusões de que o governo vai resolver os problemas do povo. Isso não é verdade, porque não há condições para isso e por causa das questões internas que não cabe aqui discutirmos. Mas, então, diante de todas estas análises a gente entende que se conseguirmos ajudar que as organizações, os movimentos sociais e as entidades que mexem com as pessoas mais pobres fiquem um pouco mais fortalecidas e organizadas com uma leitura da conjuntura mais atualizada, nós estamos contribuindo com a nossa missão.

REDE – Quais são as linhas de ação estratégica da Rede?

Eliane – Basicamente estamos centrados em três aspectos. Um deles é retomar o trabalho de base. De todos, me parece o mais complexo, porque estamos há muitos anos afastados disso. Logo as organizações e as entidades estão com um conteúdo e um método muito desatualizados de trabalho de base. As pessoas, por um outro lado, têm medos, receios e dúvidas porque mexer com as pessoas que estão nestas condições precárias de vida é também se comprometer com elas, e isto não é fácil, não é uma opção qualquer. Este é um desafio que estamos colocando para todos nós. A outra questão é a gente tentar recuperar o aspecto da formação para além daquela formação de orelha de livro e para além de resolver um problema imediato que a gente tem. Mas, sim, recuperar a formação da leitura, da estrutura do mundo que nós estamos vivendo e, dentro desta estrutura, quais são as alternativas históricas que já existiram e que alternativas propomos hoje. Quer dizer, hoje temos que elaborar novas estratégias enquanto esquerda, enquanto projeto de mundo e isso tudo saiu da moda, nestes últimos anos. Disseram para nós que não tinha mais luta de classe, que não existe mais socialismo, que a revolução nunca mais vai acontecer, que acabou a história e que nós vamos ser neoliberais até a morte para sempre. Isso é nadar contra a maré. Todos estes elementos estão mais vivos do que nunca, nunca esteve tão forte a luta de classe, nunca a classe dominante esteve tão atuante. Nunca nós, trabalhadores, fomos tão atingidos e tão massacrados. Estamos perdendo nossos direitos todos os dias, sejam das leis trabalhistas ou demais direitos. As políticas públicas não existem e não acontecem. Em função de quê? O que é tudo isso, senão luta de classe; senão a classe dominante mantendo seus privilégios e interesses e nós perdendo os nossos? Recuperar estas categorias e elementos não são coisas simples e especialmente fazer isso com as lideranças, com os militantes que nos últimos dez/quinze anos não estudaram nada, e eu me incluo nesse grupo, é mais difícil ainda. Nós ficamos muito presos ao ativismo. Sai de uma reunião entra noutra, sai de uma atividade entra noutra e a gente não consegue se organizar, logo não consegue intervir; não consegue ter uma posição clara sobre as coisas e acaba reproduzindo a lógica do que está ai. Este é um desafio muito importante. E o outro, que não é menos importante, é a gente se apropriar de algumas ferramentas de comunicação e de elaboração. Dentro disso, nós pretendemos sistematizar esta experiência que a gente vem fazendo nestes três anos. Quer dizer, uma experiência de educação popular que tem um recurso e está dentro do governo, e ao mesmo tempo não é governo. Uma experiência como essa nunca aconteceu antes no Brasil, na República Brasileira. Então, a gente está e vai fazer um esforço de registrar esse processo com todas as suas contradições e conflitos. Porque achamos que temos lições para tirar nesse processo, com ou sem a próxima eleição do Lula no próximo ano. Para 2006, estamos nos colocando estas três tarefas, missões ou três grandes objetivos.

REDE – Como você avalia a realização das atividades previstas no planejamento de 2005 da Rede de Educação Cidadã?

Eliane – Nós estamos, de novo, passando pelos mesmos problemas. O fato de sermos uma Rede articulada com o governo e a sociedade, de termos recursos governamentais, recursos públicos, do povo brasileiro, acaba nos prendendo à burocracia e aos trâmites de liberação de recursos. Aquilo que planejamos fazer o ano todo: recuperar o trabalho de base, fazer formação desde março, terminando o primeiro convênio e seguindo no próximo, acabou mais uma vez dando um buraco de tempo entre um e outro e aí o ano de novo não ficou como gostaríamos que fosse. Mas, apesar disso, particularmente acho, e a gent
e está começando avaliar agora no final de ano e vamos continuar em janeiro e fevereiro, que a Rede está, de algum modo, sendo útil para alguma coisa. Quer dizer, aquilo que estamos propondo, que são coisas simples, sem grandes elaborações, na verdade, estão sendo úteis e necessárias às organizações populares. Desse modo, a minha avaliação é a de que apesar de todas as dificuldades que temos, tivemos e continuaremos tendo, esse jeito e proposta que vimos desenvolvendo tem o sentido de reunir pessoas e entidades que jamais se encontram por outras razões na mesma mesa e reunião. Existem experiências interessantes em cidades médias e pequenas, onde as pessoas não têm fóruns/espaços em razão de disputas internas por diferentes por correntes. Percebemos que há uma fragmentação imensa entre as forças populares. De algum modo, a forma como organizamos o nosso plano de trabalho e reunimos nos municípios as forças e as entidades, propondo a questão do trabalho de base e a formação, isso acaba aglutinando vários setores que antes não se encontravam. Isso parece um aspecto bastante positivo. E outro aspecto é que resgatando elementos, como a análise de conjuntura e a formação, percebemos que as pessoas estão muito afim e precisando disso. A gente sente que a nossa proposta é útil para a situação que nós estamos vivendo hoje. A grosso modo, temos percebido estes elementos, sem ter organizado e sistematizado propriamente numa avaliação do ano.

REDE – Como vê o foco de ação e atuação junto às famílias mais empobrecidas do país?

Eliane – Para mim, esse é o “X” da questão, é o grande nó. Porque nós temos, nos últimos anos, uma surdez, um jeito muito ruim de fazer trabalho de base com as famílias. Normalmente, a gente vai com um pacote de soluções, propostas e projetos embaixo do braço. Vai com aquilo pronto e esparrama entre as pessoas. Esse esforço de a gente ouvir o que as pessoas estão pensando, que, de repente, por mais bem intencionados que estejamos, e eu acho que estamos, não vai ao encontro das necessidades e ordem de prioridades das pessoas. Aqui, o método de Educação Popular do Paulo Freire é a nossa ferramenta para entender e remodelar esse nosso trabalho. Nós, às vezes, vamos para um bairro completamente cientes que o problema ali é a fome, a saúde ou a educação. Aí tu vai conversar com as pessoas sobre esses problemas e elas estão com outras questões. E aí as coisas não encaixam. As pessoas aceitam, até admitem que a gente converse, que fiquemos ali, mas não respondem e nem abraçam a causa; não se sentem envolvidas e integrantes. Mas, como é algo que é apresentado e as pessoas não têm nada a perder, afinal de contas, elas ficam por ali. Mas, aquilo não cria vida, não cria vínculos, não cria matéria. E a gente sofre porque vamos lá bem intencionados e não tem efeito o nosso trabalho. O processo de nucleação das famílias é, para mim, o mais delicado, porque mexe com a nossa essência de militantes e a nossa compreensão de que fazer o trabalho com as famílias jamais terá resultado imediato, jamais as soluções estão prontas, jamais o que temos hoje, do jeito que está, resolve. O problema das pessoas não vai se resolver com o Bolsa Família, ou com uma coisa aqui, uma coisa ali. Elas têm problemas mais complexos. No fundo, o esforço é de convencer um conjunto maior possível de militantes para, efetivamente, abraçarem a causa popular para muitos anos, muito tempo e tirar de suas cabeças esta neurose de querer resolver “hoje” os problemas. Em razão desse imediatismo, muitos ficam angustiados e sofrendo, querendo um pacote de salvação que diga: o que fazer, como fazer, depois desse passo vai acontecer isso e a gente tem que ter mais aquilo, mais aquilo outro, etc. Isso não existe! Isso é negar a dialética, negar o ser humano. O ser humano não é um pacote pronto, pelo contrário é uma coisa completamente inacabada. Quanto mais o ser humano coletivo! Coletivamente, isto tudo se multiplica. Esse é o esforço que nós temos que fazer de convencimento da militância de que esta causa é para além de governos, para além de projetos que tenham recursos ou não, mas é uma causa sua, como ser humano, de abraçar uma coisa que é maior do que as suas forças, que é um processo lento, longo, difícil, tortuoso, mas profundamente interessante porque é a causa da humanidade. É você se convencer de que o ser humano está condenado à morte. Ninguém nasce e decide: eu vou ser miserável, ou vou morrer na violência, eu vou usar drogas… Se envolver com as pessoas, na verdade, é quase um trabalho missionário, uma missão para muitos anos e muito tempo. E sem tanto sofrimento, sem essa coisa de querer: “eu tenho que resolver”. Não é você. É um conjunto de coisas. Tem que colocar na cabeça a idéia de que: “se não tiver luta, não vai ter solução”. Porque a classe dominante não vai nos permitir nenhum avanço de graça. Ela não vai nos dizer: “olha, cansamos de enriquecer, agora nós vamos repartir com os pobres”. É quase isto que a gente está sonhando. Isso não virá jamais! A perspectiva da luta é permanente e complexa. Se as pessoas não entenderem isso, elas vão desanimar e abandonar a luta.

“Esse é o esforço que nós temos que fazer de convencimento da militância de que esta causa é para além de governos, para além de projetos que tenha recursos ou não.”

Equipe de produção: Locenir T. de Moura (Santa Catarina) e Rita de Cássia Machado (Rio Grande do Sul)

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