Algemas em Ladrões de Paletó

Fui desejar feliz aniversário pra mana Elma, mês passado, e ela reclamou do final da novela Belíssima: “Como é que pode, ela, a salafrária, acabar em Paris, sem punição, nos braços do garoto de programa?” Respondi que não acompanhara a novela, só o primeiro capítulo e que, se o final foi esse, tinha saido coerente.

ALGEMAS EM LADRÕES DE PALETÓ

Fui desejar feliz aniversário pra mana Elma, mês passado, e ela reclamou do final da novela Belíssima: “Como é que pode, ela, a salafrária, acabar em Paris, sem punição, nos braços do garoto de programa?” Respondi que não acompanhara a novela, só o primeiro capítulo e que, se o final foi esse, tinha saido coerente. Pra quem não lembra, refresco a memória. No primeiro capítulo, Bia Falcão paga pessoas pra fazer um protesto, chamando a atenção da mídia e ganhando publicidade de graça pra sua loja, e explica pra neta Júlia, que não estava entendendo nada: “A ética, minha querida, já acabou há muito tempo neste planeta. Só os ingênuos acreditam nas grandes causas.”
 A novela foi, voltou, como toda novela, mas acabou mostrando que no mundo de hoje e no Brasil não é exatamente a ética que é o forte em certas camadas sociais. Não acabamos de sair da Copa do Mundo e não vimos todos os interesses em jogo, inclusive da seleção brasileira, onde o técnico, por exemplo, fazia propagandas milionárias ao lado dos jogadores? Quantos dos grandes corruptos, não os que roubam centavos ou até milhões, mas os dos bilhões estão na cadeia? Não tem uma centena de deputados denunciados por roubarem dinheiro público que deveria ir para comprar ambulâncias e melhorar a saúde do povo? A Polícia Federal não prende gente todos os dias, felizmente agora a mais graúda, por sonegação, roubo, etc.?
 Estamos num tempo em que os valores gerais da sociedade estão se corroendo. E não é um fenômeno apenas brasileiro. O que explica a guerra do Iraque e agora a do Líbano senão a busca do controle do petróleo em vez da negociação e da busca da paz? E o consumismo desenfreado que parece ser a única referência de muita gente? A propaganda não leva a comprar, comprar, comprar, como se aí e só aí estivesse a felicidade? Ou então os lucros, cada vez maiores, de bancos, multi e transnacionais, onde a vida das pessoas, o respeito à natureza e ao meio ambiente tornam-se meros detalhes? O que explica a falta de indignação das pessoas diante da extrema pobreza da África ou da calamitosa distribuição de renda do Brasil? Onde estão os ingênuos das grandes causas que moveram muitas vezes o mundo e trouxeram mudanças?
 O neoliberalismo trouxe junto com o mercado absoluto e selvagem uma ética da competição sem freios, da erotização das relações afetivas, do corpo, do prazer que arrasta crianças, jovens e todo mundo. Um teórico norte-americano chegou a dizer que estávamos no fim da história, tal o triunfo do capitalismo neoliberal. O Consenso de Washington, cujas idéias-chave até seus formuladores hoje negam, trouxe sim, em vez da paz e do desenvolvimento sustentável, a falta de ética ou a pura ética concorrencial e competitiva –‘quem pode mais chora menos’ -, o desprezo pelos pobres e desvalidos, o lucro pelo lucro, a destruição da natureza e a poluição ambiental e moral.  
 Atravessamos um período da história onde a segurança, o respeito ao outro, a vida em comunidade sofrem de um colapso, que vai levar tempo para ser recuperado. No Brasil, não há dia que a Polícia Federal não estoure mais uma quadrilha em algum canto deste imenso país. Milhões ou bilhões roubados do povo, dos trabalhadores, dos que trabalham honestamente, dos que pagam impostos. Talvez uma das poucas notícias boas está retratada na frase de Manoel Dias, um agricultor de Rondônia, quando assistia à prisão dos chefes das máfias estaduais, incluídos aí o Presidente da Assembléia e do Tribunal de Justiça, 23 em 24 deputados denunciados, o governador está sendo investigado: “Esse é o país que a gente quer ver. É a lei para todos. Nunca pensei que um dia fosse ver isso: algemas em ladrões de paletó”. Feliz e finalmente: ainda há uma esperança!

 

Selvino Heck
Assessor Especial do Presidente da República

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