Onde o Brasil faz o nó com a Angola

"O Brasil tem uma dívida de sangue com Angola". A frase, proferida por Rubens Ricupero, cidadão brasileiro, em sua visita à Angola, em maio de 2003, na qualidade de secretário geral da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (Unctad), expressa quão grande e forte é o vínculo histórico que os dois países têm.

Paulo André*

 Um vínculo derivado do tráfico de escravos(as). A partir desse fenômeno, milhões de cidadãos e cidadãs angolanos(as) foram deportados(as) para a América do Sul, com destaque para o Brasil, onde cerca de 4 milhões de angolanos(as) foram desterrados para trabalhar – estima-se.

Com a imigração dessa mão-de-obra para o Brasil, houve entrada de hábitos, costumes e rituais desses povos. Em suma, eles trouxeram a sua cultura, a sua maneira de ser e estar na vida. As danças, os penteados, os batuques, as práticas espiritualistas, enfim, todas as características genuínas daquela gente.

Podemos questionar o motivo de citar Rubens Ricupero neste texto. Mas tem razão de ser, ele expressa, em determinada altura, o reconhecimento da presença da cultura dos povos de Angola na heterogênea sociedade brasileira – algo inegável.

Assim como afirmou Rubens Ricupero, o músico angolano Dom Caetano, já de forma mais concreta, exprime, numa das suas belas canções, o seguinte refrão: "Samba é filha de Semba". Aqui, o cantor pretende difundir a mensagem segundo a qual o samba do Brasil tem suas raízes no semba de Angola.

Semba é uma palavra derivada de Massemba (da língua nacional de Angola, kimbundu), que quer dizer umbigada ou contato com a região pélvica entre os bailarinos (homem e mulher) que dançam. Ela, normalmente, é dançada aos pares. Só na escassez de figurantes dançam indivíduos do mesmo sexo ou individualmente.

O semba é originário de Luanda. Foram escravos(as) dessa região de Angola que trouxeram a dança ao Brasil durante o período escravagista. Eles dançavam nas horas livres e os patrões entendiam como uma forma de manifestação, por isso proibiam. Como a cultura é intrínseca à pessoa, emana da alma, não foi possível extinguir. Daí que a dança e a canção resistiram até os dias de hoje, tornando-se muito popular no Brasil e ganhando outros contornos.

O primeiro registro da palavra “samba", que também significa semba, aparece na revista "O Carapuceiro", de Pernambuco, em 3 de fevereiro de 1838, quando Frei Miguel do Sacramento Lopes Gama escreve contra o que chamou de "Samba d’almocreve". Em meados do século 19, a palavra samba definia diferentes tipos de música introduzidos pelos escravos africanos, do Maranhão a São Paulo. Entretanto, de semba para samba houve uma corruptela.

Além do samba, existem outras afinidades culturais e religiosas que ligam Angola ao Brasil: é o caso da capoeira. Essa prática é sempre acompanhada por música tocada com instrumentos como berimbau, batuque, reco-reco e outros. A capoeira também tinha sido vista pelos portugueses como sinal de protesto, assim como o semba de Angola, porque era usada como forma de defesa pessoal, de resistência aos opressores e, também, como meio de transmitir a sua cultura e melhorar a moral; por isso, era praticada em segredo.

Quanto às práticas religiosas ou religiões tribais trazidas pelos povos de Angola, ressalta-se a umbanda (vem de Kimbanda – curandeiro ou adivinho) e o candomblé. Religiões que acreditam em um deus, Zambi ou Nzambi (respectivamente, palavras da língua Kikongo e Kimbundu) para a nação Bantu, da qual Angola faz parte. Nessas crenças são característicos a bruxaria ou o feitiço para fazer mal ou bem a alguém.

A palavra quimbanda é mencionada por vários escritores angolanos em suas obras literárias. Assim, se pode ler num poema de Viriato da Cruz e em "Uanga", prosa de autoria de Óscar Ribas, os seguintes versos e frases que descrevem o recurso de pessoas ao Kimbanda em busca de feitiço para solucionar certos problemas:

"Levei à avó Chica,
KIMBANDA de fama,
areia da praia da marca que o seu pé deixou,
para que fizesse um feitiço forte e seguro,
que nela nascesse um amor como o meu…".

"Estenderam então uma esteira, e o QUIMBANDA, depois de riscar com pemba um banquinho, colocou-o em cima dela".

A religião, assim como outras culturas africanas, consolidaram-se ao longo da história e se desenvolveram bastante no Brasil após a imigração de escravos(as). Mas somente as línguas originárias – uma das grandes riquezas culturais desses povos – não foram conservadas. As línguas como o Kimbundu e o Kikongo, de Angola, e as de outras regiões de África sumiram. Talvez, fruto da pressão colonial no sentido de não se expressarem nos seus dialetos, mas em português. Seja como for, como se explica a resistência dos rituais religiosos, da dança e do canto às pressões? É uma questão para reflexão.

Com essas referências, sobre a dança, a música e a religião, torna-se mais fácil perceber onde está o nó histórico entre a Angola e o Brasil. Dois países unidos pela lusofonia, relações comerciais e políticas. A par da história colonial, o Brasil foi o primeiro país no mundo a reconhecer a independência de Angola, em 11 de novembro de 1975, e isso fortalece demais a união entre ambos Estados.

*Jornalista da Angola Press, colaborador do Ibase.

Publicado em 26/10/2007.

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