O queijo e o drama que se fala em voz alta

“Com a mão trêmula como quem comete um crime.” O crime trêmulo da fome. É assim que Josué de Castro descreve seu personagem retirante, Zé Luís que, deserto de comida e consciência, rouba queijo de coalho para matar aquela que o matava.

“Com a mão trêmula como quem comete um crime.” O crime trêmulo da fome. É assim que Josué de Castro descreve seu personagem retirante, Zé Luís que, deserto de comida e consciência, rouba queijo de coalho para matar aquela que o matava. Está escrito no livro Homens e Caranguejos. Wandevergue também tremia quando decidiu roubar queijo, não de coalho, mas do-reino. No vertiginoso raciocínio de um homem já embriagado de bebida e raiva, aqueles dois potes, que custavam juntos R$ 85, renderiam dinheiro suficiente para alimentar as sete crianças que os esperavam em casa. Wandevergue, assim como Zé Luís, foi pego em flagrante. E isso não está escrito em livro algum, mas registrado nos jornais, nas TVs, nas rádios.

Há exatos 50 dias, Wandevergue foi notícia após roubar queijo em um supermercado no Recife para tentar vendê-lo e, assim, voltar para casa de mãos cheias, ainda que trêmulas. Terminou preso e, de seu relato de fome, daquela que poucos admitem falar em voz alta, ganhou compaixão e liberdade após seis dias de prisão. Hoje, Wandevergue ainda vive abastecido pela solidariedade de vizinhos que ajudam a alimentar a família com feijão, leite, bolachas e queijo. Mas os pressupostos embutidos na caridade incomodam o flanelinha.

“Eu vou endoidar senhora”, profetiza em um não raro instante de explosão. Wandevergue estoura para fora, em acessos de auto-afirmação, e estoura para dentro, deixando muitas vezes um concentrado silêncio tomar conta da conversa. Até seis meses atrás, o flanelinha, os filhos e a mulher grávida dormiam em papelões e um teto ora de chuva, ora de desconsolo. Nunca de estrelas.

Em uma dessas noites, o carro da assistência social parou.
– Essa é sua família?
– É sim senhor.
– Qual o nome dos seus filhos?
– Fuba, leite, feijão, arroz, açúcar…
– E qual o seu nome?
– Eu sou ninguém.
– Você é louco?
– Eu não sou louco não, não tá vendo que todo mundo tem fome aqui?

Mas o assistente social foi embora. Parecia não entender de metonímias. E o morador da rua, sem jamais ter ouvido falar em figuras de linguagem, engoliu seco novamente.

Wandevergue Rosas Paiva, 41 anos, estudou apenas até a 4ª série do ensino fundamental, perdeu a mãe para a violência e do pai só lembra do carro Brasília com que ele viajou para São Paulo. Vive dos trocados que ganha como flanelinha, nunca teve carteira de trabalho e soma agora duas passagens pela prisão. A primeira aconteceu 92 por envolvimento com drogas. Sua companheira, Andréia Miguel dos Santos, 32, recebe uma Bolsa-Família de R$ 122 que, além de ajudar na feira, paga também as 10 parcelas de uma pequena TV onde a família pôde assistir, pelos jornais, à novela não romanceada de Wandevergue.

Para o futuro, o flanelinha fala da promessa de uma carroça que pode mudar sua vida. “Um senhor ofereceu essa carroça pra mim e se alguém trouxer ela pra cá, vou vender pastel, bolo, coxinha e espetinho. O que eu não conseguir vender, trago pros meus filhos.” O testemunho saliva de boas intenções e prova que, no Brasil, alimentar é, antes de tudo, saciar.

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