América Urgente

Eryk Rocha, filho de Glauber Rocha, lançou o documentário PACHAMAMA no último festival de cinema de Gramado. Segundo matéria do jornal, o público saiu atordoado do cinema.

Eryk Rocha, filho de Glauber Rocha, lançou o documentário PACHAMAMA no último festival de cinema de Gramado. Segundo matéria do jornal, o público saiu atordoado do cinema. Resultado de uma viagem de jipe pela América do Sul – do Rio de Janeiro às fronteiras do Brasil e com o Peru e a Bolívia, o diretor afirmou que o filme foi concebido ao longo ‘de uma travessia pelo imponderável’, pensando o Brasil a partir das experiências de Peru e Bolívia.

No longa metragem, o cineasta mergulha na realidade dos mineiros bolivianos, que descrevem seu local de trabalho como um inferno na terra e documenta os lamentos de indígenas peruanos. O pico de tensão no filme aparece no olhar sobre o cotidiano da população branca de Santa Cruz de la Sierra, centro da Bolívia, que questiona a plataforma governamental do líder e presidente do país, Evo Morales.

Diz Eryk Rocha: “Na Bolívia, está acontecendo uma reinvenção política a partir da revalorização da terra e da busca pela ancestralidade deles como nação”.

Isso tudo aconteceu e foi dito em meados de agosto deste ano. Não vi ainda o filme, mas segundo as informações o que ele relata e questiona é o momento histórico por que passa a Bolívia e passa a América do Sul. Quando em algum outra época momento indígenas, mulheres, bispos, metalúrgicos, lideranças de esquerda estiveram ao mesmo tempo em governos da maioria dos países sul-americanos? Quando uma União Sul-americana (UNASUL) reuniu quase todos os presidentes do continente para discutir uma crise, a da Bolívia, sem pedir a bênção do império do Norte, ao contrário dispensando-o?

Algo está mudando nas entranhas do continente. E não poderia acontecer sem reações, internas e externas. Os que perdem poder, os que deixam de ser dominantes em seus valores, os que têm que ouvir os de baixo, sempre esquecidos, sempre humilhados, ou mais que ouvir, permitir que governem por obra da democracia que os elegeu, obviamente não vão se render às mudanças sem reagir. É o conhecido e popular ‘jus sperneandi’, direito de espernear.

É o que está acontecendo na Bolívia, como há poucos dias no Paraguai. Nos primeiros dias após à posse do presidente Lugo, forças conservadoras queriam paralisar, contra a vontade soberana do povo, o processo de ‘cambio’ do país. E o presidente teve que chamar o povo pras ruas, invocar a democracia, a decisão popular de fazer do Paraguai um outro país, depois de mais de sessenta anos de um único e mesmo partido no governo e no poder.

Mas segundo Eryk Rocha, o que está acontecendo na Bolívia é mais profundo. Está acontecendo uma reinvenção política. Os indígenas bolivianos e a população pobre da Bolívia estão buscando a sua ancestralidade como nação, suas origens, que são de muito antes de quando os colonizadores europeus invadiram estas terras. Estão revalorizando a terra como sua referência primeira e última de povo e de nação.

Os brancos, poderosos e ricos, resistem. E, como no Brasil com Lula, utilizam-se do preconceito arraigado para buscar armas para a rejeição da democracia. Dizem, por exemplo: “Chega de ser a carteira do país”; “Se precisar, vai ter sangue. É preciso conter o comunismo e derrubar o governo deste índio infeliz”.

Fazem de conta que nunca derramaram o sangue de milhares senão milhões de indígenas ao longo dos séculos. Ou de que nunca os escravizaram ou colocaram a serviço de seus lucros e das riquezas saqueadas ao longo do tempo, pra enriquecer os ricos que hoje são ricos por causa deste saque histórico. (Por ironia da história, ao mesmo tempo em que os povos sul-americanos buscam seu próprio caminho e destino, os ricos do Norte, por sua ganância, estão em meio a uma crise financeira brutal, renegando na prática seus princípios neoliberais e tendo que enxugar seus gordos bolsos para salvar bancos seculares, até então donos do mundo).

As arruaças não terminarão com a reunião da UNASUL nem com a reunião de Evo Morales com os governadores que não reconhecem o desejo da população expressos no referendo realizado com apoio de quase 70% ao presidente e a suas políticas. Toda vez que o povo se levanta e ocupa espaços que antes lhe eram negados, é preciso paciência, muito trabalho e discernimento, muita aposta na organização popular pra levar adiante um projeto de país soberano, justo, onde a maioria do povo é dona do seu nariz e do seu futuro.

Ficam neste momento pelo menos duas interrogações ou provocações. Por um lado, é fundamental todo apoio aos processos em curso, que não admitem vacilos nem recuos. A hora é de mudar, a hora é de aprofundar a soberania, a igualdade, a distribuição de renda, a justiça social e a democracia popular. Isso só será possível com luta, com organização, com amplo apoio e com reformas estruturais no campo econômico, social, cultural.

Por outro, fica a pergunta provocativa de Eryk Rocha, depois da exibição de Pachamama: “Onde é que o Brasil vai buscar suas matrizes para se repensar como país?”

Selvino Heck
Assessor Especial do Gabinete Pessoal do Presidente da República

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