AS VEIAS ABERTAS DA AMÉRICA LATINA

Estou na Feira do Livro em Porto Alegre para o lançamento e debate sobre o livro ABAIXO A REPRESSÃO – Movimento estudantil e as Liberdades democráticas, um belo retrato do movimento estudantil gaúcho dos anos 70 e 80 (Rafael Guimarães e Ivanir Bortot, Ed. Libretos, 2008). Mas há outro acontecimento no mesmo dia e horário, fazendo concorrência: debate e sessão de autógrafos de Eduardo Galeano, do seu mais recente livro “Espelhos – Uma História quase universal.”

Estou na Feira do Livro em Porto Alegre para o lançamento e debate sobre o livro ABAIXO A REPRESSÃO – Movimento estudantil e as Liberdades democráticas, um belo retrato do movimento estudantil gaúcho dos anos 70 e 80 (Rafael Guimarães e Ivanir Bortot, Ed. Libretos, 2008). Mas há outro acontecimento no mesmo dia e horário, fazendo concorrência: debate e sessão de autógrafos de Eduardo Galeano, do seu mais recente livro “Espelhos – Uma História quase universal.”

A história não é apenas essa. Galeano, toda vez que chega ao Rio Grande do Sul, arrasta multidões e, por incrível que pareça, virou unanimidade. Essa unanimidade tem muito a ver com o livro As Veias abertas da América Latina, por coincidência fazendo 30 anos – 1978-2008 – de seu lançamento em português, acontecido sete anos depois do lançamento original. O livro está na 48ª edição brasileira e anualmente ganha de duas a quatro tiragens novas, cada uma de 3 a 5 mil exemplares. O livro desnuda o saque à América Latina que persiste desde o descobrimento, analisando os mecanismos de poder, os modos de produção e os sistemas de expropriação. O público leitor ainda é o mesmo de 30 anos atrás: basicamente estudantes, professores, jornalistas e políticos, diz Marcus Gasparian, filho de Fernando Gasparian, da lendária Paz e Terra, que publicou o livro tornado best-seller.

Cheguei em casa e fui procurar meu exemplar de capa dura, todo amassado de tanto uso, 6ª edição, de 1979, ‘aumentada de um Posfácio’. Como disse a psicóloga Liliane Froemming, um dos principais personagens de “Abaixo a Repressão”, As Veias Abertas ‘era a nossa Bíblia’, que carregávamos debaixo do braço por todos os lugares, que usávamos nos seminários e debates, um retrato e painel da história de opressão e exploração sofridas pela América Latina ao longo da história e ao mesmo tempo uma espécie de bússola do que queríamos (ou não queríamos) para o futuro do continente.

As Veias Abertas… firmou-se como referência do imaginário latino-americano, quase como a imagem do Che. Virou letra de música de rock da banda Argentina Los Fabulosos Cadillacs. Como documento histórico, desperta novos leitores e lembranças nos antigos, como o jornalista Flávio Tavares: “Li o livro no exílio, no México, nos anos 1970. Encontrei Galeano em 1964, em Brasília, ele se hospedou na minha casa. Eu era colunista da Última Hora e, como não podíamos escrever aqui, dei para ele tudo que se sabia do Golpe. As Veias Abertas não é apenas uma reinterpretação da história da América Latina. O livro é uma obra nova sobre a dominação e sobre a própria história. Mais do que uma revisão, acrescentou e foi uma espécie de sol, desculpe o lugar comum. O Galeano entrou, mesmo não sendo um historiador, em labirintos desconhecidos” (Zero Hora, Caderno da Feira, 13.11. 08).

Não parece, mas passaram-se 30 anos. Em 1970, Galeano assim abria o livro: “CENTO E VITE MILHÕES DE CRIANÇAS NO CENTRO DA TORMENTA. Há dois lados na divisão internacional do trabalho: um que alguns países especializam-se em ganhar, e outros em que se especializaram em perder. Nossa comarca do mundo, que hoje chamamos de América Latina, foi precoce: especializou-se em perder desde os remotos tempos que os europeus do Renascimento se abalançaram pelo mar e fincaram os dentes em sua garganta”. E assim terminava o Posfácio de 1978: “Nestas terras, o que assistimos não é a infância selvagem do capitalismo, mas a sua cruenta decrepitude. O subdesenvolvimento não é uma etapa do desenvolvimento. É sua conseqüência. O subdesenvolvimento da América Latina provém do desenvolvimento alheio e continua a eliminá-lo. Impotente pela sua função de servidão internacional, moribundo desde que nasceu, o sistema tem pés de barro. Postula a si próprio como destino e gostaria de confundir-se com a eternidade. Toda memória é subversiva porque é diferente. Todo projeto de futuro também. (…) Porque na história dos homens, cada ato de destruição encontra sua resposta – cedo ou tarde – num ato de criação.”

As ditaduras foram derrotadas, os ventos democráticos voltaram a soprar em todos os países sul e latino-americanos. Não acontece mais o descrito na página 285: “No meu país (o Uruguai), por exemplo, As Veias Abertas da América Latina não pode circular, assim como no Chile e na Argentina. As autoridades o denunciaram, na televisão e nos jornais, como um instrumento de corrupção da juventude”.

As Veias Abertas foi nestes 30 anos um referencial de denúncia, um referencial de luta pela democracia, pela vida, pela justiça, de horizonte na ‘recuperação do destino’ que, de algum modo, hoje se apresenta e vislumbra em todos os países, sob vários matizes, mais à esquerda, menos à esquerda, no compromisso com o povo pobre e sofrido, com os indígenas da Bolívia, do Equador do Paraguai, com os trabalhadores e os excluídos do Brasil e da Venezuela. “A história é um profeta com o olhar voltado para trás: pelo que foi e contra o que foi, anuncia o que será”. E o que será, segundo Galeano: “Recuperar os bens que sempre foram usurpados, equivale a recuperar o destino”.
É muito bom saber que Eduardo Galeano, assim como muitos e muitos de nós, reafirma seu sonho da Pátria Grande, o sonho de Bolívar, de Zumbi, de Zapata, de Sandino, de Allende, de D. Romero, de Che, de Martí, e de tantos lutadores e lutadoras, companheiros e companheiras.

As veias estão ainda abertas, mas nelas hoje, século XXI e terceiro milênio, corre o sangue da libertação e sopram os ventos da liberdade. Porque como escreveu Galeano no final do livro na primeira edição: “Os despojados, os humilhados, os miseráveis têm, eles sim, em suas mãos a tarefa. A causa nacional latino-americana é, antes de tudo, uma causa social: para que a América Latina possa renascer, terá de começar por derrubar seus donos, país por país. Abrem-se tempos de rebelião e mudança. Há aqueles que crêem que o destino descansa nos joelhos dos deuses, mas a verdade é que trabalha, como um desafio candente, sobre as consciências dos homens.”
Assim, feliz
mente, está sendo.

Selvino Heck
Assessor Especial do Presidente da República

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

1 + 3 =