A crise vista de baixo

ImageOlhemos a vida das pessoas, da gente comum, como andam, sobrevivem, se estão preocupados com a queda ou subida da Bolsa, com o valor do real ante o dólar. Na verdade, o olho está no salário do fim do mês, se vai dar para comprar o básico, se haverá salário quando não há emprego, se o biscate vai garantir a comida para os filhos, se a aposentadoria é suficiente para pagar o remédio. A CRISE VISTA DE BAIXO <!– @page { margin: 2cm } P { margin-bottom: 0cm; text-align: justify } –>


Selvino Heck

Quando vejo na mídia os índices macroeconômicos e de mercado tipo Bolsa, câmbio, me pergunto: que isso tem a ver com a minha vida e a de milhões? Por acaso, temos dólares estocados em casa ou somos ‘players’ da Bolsa? Evidente que tem a ver. Estes índices mexem com a estabilidade da moeda, com o fluxo de capitais no mundo, a exportação, etc. Daí decorre o risco-país, isto é, quanto de juros o país vai pagar, a capacidade de honrar os encargos da dívida. E dependendo dos juros, sobra mais ou menos dinheiro para acabar com os gargalos da infra-estrutura – estradas, investimentos em energia, construção de portos, aeroportos – e especialmente a quantidade de recursos disponíveis para a saúde, a educação, a cultura, a assistência social, a Reforma Agrária, a economia solidária, o micro-crédito, a habitação, o saneamento, a preservação ambiental. Por aí se vê se há crise no país, se haverá crise, se a crise existente vai perdurar.

Mas é necessário e possível ver as coisas de outro ângulo. Olhemos a vida das pessoas, da gente comum, como andam, sobrevivem, se estão preocupados com a queda ou subida da Bolsa, com o valor do real ante o dólar. Na verdade, o olho está no salário do fim do mês, se vai dar para comprar o básico, se haverá salário quando não há emprego, se o biscate vai garantir a comida para os filhos, se a aposentadoria é suficiente para pagar o remédio.

São dois olhares sobre a crise. O Brasil-continente, 12ª economia mundial, está entre as quatro nações com a mais injusta e iníqua distribuição de renda do mundo. Tem um salário mínimo menor que o do Uruguai, Paraguai, Argentina. Tem taxas de desemprego beirando os 20% da população economicamente ativa, e mais trabalhadores informais que os de carteira assinada.

Para estes todos, os índices da Bolsa são números vazios. O noticiário macroeconômico serve para 20 ou 30% da população que com ele tem familiaridade ou interesse imediato. Os demais 70 ou 80% são trabalhadores pobres, indigentes, miseráveis, preocupados com a comida, emprego, salário, renda do dia seguinte.

Há quem não compreenda o fato de haver hoje 8 milhões de famílias, cerca de 35 milhões de brasileiras/os, recebendo mensalmente o Bolsa-Família, um programa do governo federal que complementa sua renda ou lhes dá a única renda, entre 50 e 95 reais mensais, dependendo do número de filhos em idade escolar.

 

Para estes milhões, é um dinheiro abençoado. É o caso de Pedro Geraldo Silva, que mora no Sovaco da Cobra, bairro de Jaboatão dos Guararapes, região metropolitana de Recife. Dos R$ 95 que recebe por mês, R$ 23 são gastos na conta de energia. Com o resto, só comida, cozida à lenha por causa do preço do gás. Nos últimos dois anos, o Bolsa-Família trouxe mais arroz e feijão, ossos com nacos de carne, pescoços de frango e salsichas para o cardápio da casa, quase um banquete. “Do que era antes desse dinheiro, melhorou muito, graças a Deus”, diz ele (FSP, 30.10.05, p. A-6).

É muito, é pouco? Programas como o Bolsa-Família estimulam a economia local es regional. Nos últimos seis meses, o comércio nos Estados da região Nordeste, onde vivem quase 50% das famílias beneficiadas, cresceu até seis vezes a média nacional, chegando a 28% na Paraíba. Empresas lançam artigos e lojas voltadas aos beneficiários dos programas, e redes de varejo detectam alta de mais de 10% nas vendas de produtos populares. “Nesta época de seca, principalmente, os programas sociais têm sido a salvação dos mais pobres. Os efeitos dessa renda extra sobre o consumo são surpreendentes”, afirma Wilson Andrade, vice-presidente da Federação das Indústrias da Bahia.

Para o economista José Márcio de Camargo, da PUC-Rio e sócio-diretor da Consultoria Tendências, parte importante da renda do Nordeste vem hoje desses programas, com impactos significativos sobre a demanda. “Os efeitos gerais são multiplicadores”, afirma. Em municípios como Pedra Branca (CE), Vitória de Santo Antão (PE), os recursos do Bolsa-Família correspondem a cerca de 40% da receita total disponível. Em outras localidades da região, é a renda dos aposentados e pensionistas que movimenta boa parte da economia local.

Como diz Sueli Maria Dumont, “também está dando para comprar uma ou outra roupinha para os meninos. Aqui em casa, o dinheiro do governo só não vai para bebida e cigarro. No resto a gente gasta.”

Selvino Heck
Assessor Especial do Presidente da República

3/11/2005

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