“Os responsáveis pela desigualdade precisam ser acuados”

O PIB per capita do Brasil, em termos médios, é mais do que suficiente para proporcionar bom padrão de vida para todos; a extensão da miséria brasileira, portanto, só pode ser creditada à desigualdade social. Chico Whitaker fala da criação da Ação Brasileira de Combate à Desigualdade. Confira! Por Valéria Nader e Mateus Alves

Embora a economia brasileira esteja entre as maiores do mundo, os indicadores sociais do país levam a uma vexatória posição quanto ao desenvolvimento humano em comparação a outros países.  No relatório anual das Nações Unidas sobre o desenvolvimento humano, o Brasil figura como o oitavo país com a maior desigualdade no planeta, ficando atrás apenas de Serra Leoa, República Centro Africana, Suazilândia, Lesotho, Botsuana, Namíbia e Guatemala. Para falar do assunto e promover a criação da Ação Brasileira de Combate à Desigualdade (ABCD-já), o Correio da Cidadania conversou nesta semana com Chico Whitaker, membro do movimento e um dos idealizadores do Fórum Social Mundial.

Correio da Cidadania: Como surgiu a Ação Brasileira de Combate à Desigualdade?

Chico Whitaker: Um grupo de pessoas começou a se preocupar com o que estava acontecendo no Brasil, em termos de realização dos objetivos pelos quais o governo foi eleito; pensaram que alguma coisa precisava ser feita, que não poderiam deixar o assunto por isso mesmo. Pouco a pouco, com reuniões realizadas, viu-se que valeria a pena lançar algo que recuperasse a essência da proposta do novo governo, que era acabar com a desigualdade no Brasil; que resgatasse essa promessa e tentasse fazer com que atividades da sociedade civil, englobando todos os movimentos sociais, recolocassem o tema na pauta como o objetivo prioritário no país. Lentamente, os caminhos foram se delineando em termos do que se fazer. Um deles era definir operações, como nós as chamamos, que incidissem sobre fatores que determinam o aumento ou a manutenção da desigualdade existente no Brasil. Há, por exemplo, a questão das cargas tributárias e o modo como as receitas orçamentárias são gastas, que permitem identificar mudanças a fazer e organizar campanhas de pressão e constrangimento dos responsáveis para que a situação mude.

Ao mesmo tempo, uma outra linha de trabalho foi criar um relatório de impacto da desigualdade – semelhante a um relatório de impacto ambiental. Qualquer política de governo deveria ser analisada a partir dessa perspectiva: qual é o efeito dessa política em termos de aumentar e diminuir a desigualdade. Por exemplo, a reforma agrária diminuiria a desigualdade; o que fazer, então, para que ela se efetivasse? E a transposição do São Francisco, aumenta ou diminui a desigualdade? E assim por diante.

As idéias foram sendo amadurecidas até que chegou o momento de dar início a esse processo – e como saiu nos jornais a notícia de que havia um grupo de pessoas querendo promover essa iniciativa, lançamos a proposta de criar a Ação Brasileira de Combate à Desigualdade no Fórum Social Mundial de 2005, num evento em que compareceram cerca de 150 pessoas.

CC: Qual deveria ser o eixo básico de combate à desigualdade no país, considerando as áreas mais críticas?

CW: Existe uma gama de coisas que podem ser feitas. Na questão orçamentária, por exemplo, é evidente que, da maneira como o orçamento é elaborado e executado, não há nenhuma preocupação em relação à distribuição de renda. Há uma atuação ínfima de combate aos mecanismos que criam a desigualdade.

No âmbito tributário, constata-se que o pobre paga muito mais imposto do que o rico, e não há nenhuma transferência de renda de um lado para o outro. Há também a problemática do mercado interno: o atendimento das necessidades deste criaria uma potencialidade de colocação de produtos inacreditável, exigindo um aumento dos rendimentos para que se comprem produtos. Rever a pura lógica capitalista seria um passo importante a se dar, mas isso implica em mudanças na política agrícola, industrial, econômica, de comércio exterior, políticas educacionais, uma série de fatores que precisam ser revistos nessa nova perspectiva. A idéia, no fundo, é reavaliar o que se faz, tendo como eixo a necessidade de diminuir a desigualdade.

CC: O que o senhor diria quanto à sensibilidade da população em geral para a questão da desigualdade?

CW: O CONIC (Conselho Nacional das Igrejas Cristãs) vem, desde 2002, fazendo um relatório sobre a dignidade humana e a paz no Brasil. Fomos evoluindo esse relatório, tentando identificar o índice de indignação da população quanto aos atentados à dignidade, e descobrimos que tal conceito não está muito claro. Uns vêem a dignidade como algo intrínseco ao ser humano – como consta na declaração universal dos direitos do homem -, mas uma boa parte da população vê a dignidade como algo que se conquista. Em compensação, eles têm uma noção muito grande da desigualdade.

No caso do Brasil, quando se fala em dignidade, fala-se de algo abstrato; quando se fala de igualdade, fala-se de algo muito concreto. Os resultados que tivemos no relatório sobre 2005 são inacreditáveis: constatamos que 97% dos entrevistados consideram a desigualdade grande, muito grande ou enorme no país; 87% dos entrevistados acreditam que a desigualdade vai aumentar ou ficar como está; 82% consideram-na injusta; 72% não se conformam com a situação e não aceitam que seja assim; 66% demonstram disposição de atuar para reduzi-la. O relatório – que lançamos agora no seminário da ABCD e em Porto Alegre, na assembléia do Conselho Mundial das Igrejas – permite concluir que a população está cansada de saber sobre a desigualdade. O que precisamos encontrar agora são as formas de mobilização para que a desigualdade seja superada.

CC: Como transformar a sensibilidade da população em uma linguagem apropriada, para que se transforme em demanda política?

CW: Trata-se, exatamente, de criar ações concretas. Estamos agora desafiados a não mais ficar denunciando, mas a encontrar os caminhos. A idéia da ABCD não é ser uma mobilizadora ou iniciadora de ações, mas se associar tanto a aqueles que estudam o problema – como está fazendo com relação ao DIEESE, o Ipea e o IBGE – quanto às associações, organizações, ONGs e sindicatos, que devem ser os responsáveis pela mobilização em torno de ações concretas. O que pretendemos fazer é ser uma espécie de estimulador desse tipo de ação, tanto na área do conhecimento como na área da ação transformadora.

CC: Quais áreas o senhor considera serem aquelas mais factíveis à participação da população?

CW: Estamos ainda começando a identificá-las. No entanto, posso dizer que uma pressão pela reforma agrária é essencial. Precisamos também de uma mudança na tributação, para que seja mais progressiva. Uma pressão para que os recursos não sejam encaminhados majoritariamente para pagar dívidas, mas sim para atender às necessidades sociais. E também fazemos uma reflexão sobre a necessidade de se atender ao mercado interno brasileiro, mudando a economia brasileira de exportadora para uma economia voltada para nossas próprias necessidades.

CC: Existe alguma pretensão do movimento quanto à sensibilização do atual Executivo sobre o tema?

CW: Não precisamos mais chamar a atenção da população; os responsáveis é que precisam ser acuados. E isso vai
depender da nossa capacidade de pressão social.

CC: Qual o efeito, ou repercussão, pretendido com o movimento da ABCD? Como colocar o tema na agenda nacional, especialmente em um ano eleitoral?

CW: Colocar esse tema na agenda nacional é o eixo de todas as propostas: não adianta ficar falando disso ou daquilo, desta ou daquela política, sem fazer referência à questão da desigualdade, que é, dos nossos males, o maior.

CC: É corrente a propagação de idéias, até mesmo entre setores progressistas, de que, ainda que tenha se mantido o conservadorismo da área econômica no governo Lula, seriam inegáveis os avanços na área social, assim como no relacionamento com os movimentos sociais. Qual a realidade e veracidade dessas idéias?

CW: Pessoalmente, acredito que as ações do governo foram ínfimas perto da necessidade existente. Em relação aos movimentos sociais, tanto da parte do governo como dos próprios movimentos, houve uma espécie de paralisia. A sociedade falhou e o governo falhou. Este último tinha capital moral pra fazer muito mais do que fez, e a sociedade deixou prevalecer a inação. Houve medo de ir contra o governo, que era portador da esperança de todos.

CC: O senhor diria que a tônica da política social do governo provém das diretrizes do Banco Mundial?

CW: O governo faz muito mais uma política compensatória, de nível precário, do que uma política efetivamente transformadora.

CC: As políticas sociais do governo Lula seriam, então, comparáveis às do governo FHC?

CW: Lula promoveu algumas melhorias. Praticou, porém, uma distribuição de tipo compensatório, não fez nenhuma mudança substancial. Continuou a manter o povo na dependência. Não houve ruptura estrutural.

A ABCD realizará uma oficina durante o Fórum Social Brasileiro, que ocorrerá em Recife (PE) do dia 20 ao dia 23 de abril. Para maiores informações, consulte o site http://www.abcdja.org.br.

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