Fome atinge 14 milhões de pessoas no país, diz IBGE

Quase 14 milhões de brasileiros (ou 7,7% da população) viviam em domicílios nos quais a fome esteve presente ao menos um dia em 2004, revela a primeira pesquisa sobre Segurança Alimentar feita pelo IBGE, como suplemento da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio.

Considerando todos os níveis de insegurança alimentar, 72 milhões de pessoas (39,8%) estavam vulneráveis à fome em maior ou menor grau: tinham preocupação com a falta de dinheiro para comprar comida, perderam qualidade em sua dieta ou ingeriram alimentos em quantidade insuficiente. Eram 18 milhões de domicílios afetados pelo problema –ou 34,8% do total.

Segundo o levantamento do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), que usou metodologia adaptada ao Brasil, a insegurança alimentar grave (ao menos uma pessoa da família relatou ter sentido fome nos 90 dias anteriores à pesquisa) atingiu 6,5% dos domicílios do país, ou 3,35 milhões de lares. Clique aqui e veja o mapa.

Os 14 milhões de pessoas vulneráveis à fome representam menos de um terço dos 44 milhões usados como base para a implantação do Fome Zero. O cálculo indireto, a partir da renda, levou em conta linha de pobreza definida a partir de dados da Pnad-IBGE. Nesta pesquisa, a avaliação é direta, mensurada a partir da percepção dos entrevistados sobre sua segurança alimentar.

Para a economista Lena Lavinas, do Instituto de Economia da UFRJ, os 72 milhões de pessoas em insegurança alimentar mostram que o contingente de pessoas abaixo da linha de indigência –sem dinheiro para consumir uma dieta de 2.200 calorias diárias– é superior ao estimado pelo governo.

"A questão que se coloca é que a linha de indigência é então de 72 milhões de pessoas. Será que essas informações não servem para redefinir a linha do governo Lula, que estima 55 milhões de pessoas na pobreza? Essa é a conclusão que se tira dessa pesquisa", disse.

Segurança alimentar

Relacionada diretamente à renda, a segurança alimentar consiste no direito ao acesso regular e permanente de alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer outras necessidades essenciais.

A insegurança alimentar, por sua vez, está dividida em diferentes níveis: o leve inclui a preocupação com a possível falta de comida; o moderado representa perda da qualidade da alimentação e alguma restrição na quantidade de alimentos; o grave evidencia a fome.

Embora as metodologias das pesquisas sejam distintas, nos Estados Unidos a insegurança alimentar atingia 16,5% dos domicílios em 2002, sendo 3,5% desses classificados no nível grave. A escala brasileira foi adaptada da norte-americana.

A pesquisa mostra ainda que metade das crianças até 17 anos viviam em lares com algum grau de insegurança alimentar –50,5% na faixa de 0 a 4 anos e 48,3% na de 5 a 17 anos. Em geral, o problema diminui com a idade e a conseqüente capacidade de trabalho e geração de renda. Os domicílios com apenas adultos são menos suscetíveis à essa situação –presente em 24,2% desses lares – do que aqueles com crianças e adolescentes (42%).

Mais da metade (52%) das pessoas afetadas pela fome em seu domicílio viviam no Nordeste, que concentrava 7,24 milhões de pessoas com insegurança alimentar grave. O Maranhão é o Estado com maior percentual de lares com o problema (18%).

Os pesquisadores foram a campo entre outubro e dezembro de 2004. O Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome encomendou e patrocinou a levantamento.

Em 2005, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva havia posto em dúvida a precisão de levantamentos sobre hábitos alimentares ao contestar a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) do IBGE, que demonstrava haver mais pessoas acima do peso do que com fome no país. "A fome não é coisa medida em pesquisa", havia dito.

Em 2003, o excesso de peso afetava 41% dos homens brasileiros e 40% das mulheres. A POF mede o consumo dos famílias e mostrou que o excesso de peso superava o déficit de peso oito vezes entre as mulheres e 15 vezes entre os homens.

Cenário – Apesar dos dados graves, o IBGE alerta: "O cenário não é a África, vamos deixar isso claro, embora no estágio mais grave seja identificada a fome", afirmou Márcia Quintslr, chefe da Coordenação de Emprego e Rendimento do IBGE.

Demonstração disso é que, em domicílios com renda per capita de até um quarto de salário mínimo, a insegurança alimentar moderada ou grave chega a 61,2%. Para os lares com rendimento superior a três salários mínimos per capita, isso só se aplica a 1%.

Dos 18 milhões de domicílios com algum nível de insegurança alimentar, apenas 5,3 milhões eram beneficiários (29% do total) dos programas sociais de transferência de renda, de acordo os dados da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios). Ou seja: ainda existiam no país, em 2004, 12,5 milhões de domicílios vulneráveis à fome que não recebiam repasses do governo.

Transferência de renda beneficia um terço dos que têm fome

No Brasil, 8 milhões de domicílios têm algum morador beneficiado por programas de transferência de renda das diferentes esferas de governo, como o Bolsa-Família. Entre os domicílios que recebiam transferências de renda, os dados mostram que a maioria (66%) tinha ao menos um morador que relatou insegurança alimentar em algum nível.

Uma distorção de foco dos programas sociais, segundo especialistas, é que 34% dos domicílios recebiam recursos de transferência de renda mesmo estando em condições de segurança alimentar, nos quais não houve preocupação nem chegou a faltar alimentos para uma dieta saudável e variada por causa de restrições de renda.

Dos domicílios atendidos por programas sociais, 14,9% estavam em situação de insegurança alimentar grave, na qual moradores relataram que chegaram a passar fome em ao menos uma vez nos três meses anteriores à pesquisa, realizada em outubro de 2004. Era 1,2 milhão de lares nessa situação.

Para a economista Lena Lavinas, do Instituto de Economia da UFRJ, os dados revelam a "enorme exclusão das políticas sociais". Mostram ainda, diz, que os programas são "mal desenhados e inadequados" ao não beneficiarem o público alvo, aqueles que sofrem com a fome.

"As estatísticas apontam que há um déficit de cobertura de mais de 12 milhões de pessoas. Os dados mostram que há um erro de focalização gravíssimo", afirmou.

Institucionalização

A especialista defende a "institucionalização" dos programas de transferência de renda como forma de atender o contingente que não tem acesso a eles, a exemplo do BPC (Benefício de Prestação Continuada), que paga um salário mínimo a idosos e deficientes com renda familiar menor de um quarto do salário mínimo por pessoa (R$ 87,5).

"O Bolsa Família é só uma forma de organizar a fila, na qual os mais pobres nunca são os primeiros por desinformação ou porque simplesmente o recurso destinado ao município acaba. Os programas de transferência de renda têm de contemplar todos que precisam, que pela pesquisa são 72 milhões de pessoas", disse Lavinas.

Só quando for um direito constitucional, diz, é que não haverá mais esse déficit de cobertura.

Norte e Nordeste

As maiores coberturas dos programas sociais a pessoas vulneráveis à fome estavam no Norte, onde 73% dos lares beneficiados sofriam com algum grau de insuficiência alimentar, e no Nordeste (72,6%).

Pelos dados da Pnad, 57% dos domicílios (3,044 milhões) onde havia insegurança alimentar e que recebiam dinheiro de programas sociais estavam no Nordeste, o que mostra que, ao menos na
questão regional, as políticas sociais estão focalizadas. A região concentrava 52% dos lares atendidos por programas de transferência de renda e mais da metade dos domicílios com insuficiência alimentar grave.

As menores abrangências se encontravam no Sul (52,3%) e no Centro-Oeste (54,8%). No Sudeste, 58,2% dos domicílios beneficiados estavam na condição de insuficiência alimentar.

Folha de S. Paulo – 18 de maio de 2006 – Página C3

A pesquisa já se encontra na biblioteca do site

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