De autoestima, conhecimento e bem-viver

Seis da manhã, julho, frio de racharou de renguear cusco, como diria o gaúcho, uma neblina branca, densa, como sefosse no Rio Grande do Sul, vou para a biblioteca da Escola FlorestanFernandes, em Guararema, São Paulo. Encontro uns 20 jovens e lideranças doscursos regulares do MST, livro à frente, estudando aplicadamente. Lembrei-medos tempos de Seminário em Taquari, RS, quando, depois da ginástica matinal e damissa, e antes do café, tínhamos uma hora de leitura e estudo preparando o dia.

 Realiza-sena Escola Florestan o V Encontro Macro-Regional Sudeste da Rede de EducaçãoCidadã, com cerca de 50 lideranças sociais, educadoras e educadores popularesde São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo. O tema central é‘Comunicar para avançar no Poder popular’, com subtemas como Projeto popular eModelo de Desenvolvimento, Formação para a Comunicação Popular, e oficinas decomo fazer um jornal popular, acessar e utilizar blogs e redes sociais, avançarna comunicação e apropriação da cidade. Após ver coletivamente o filme “UnPoquito de tanta Verdad’, sobre uma histórica greve de professores na Provínciade Oaxaca, sul do México, em 2006, que conquista apoio da comunidade, ganharepercussão nacional e coloca em xeque inclusive o governo federal, dizTatiana, educadora do Rio: “As pessoas querem aprender, mas estão com aauto-estima baixa.

A melhor forma de passar auto-estima é passar oconhecimento. Sem conhecimento não há auto-estima. Eu procuro melhorar aauto-estima em toda minha ação de formação. As pessoas acham que não fazemparte daquilo. A auto-estima está ligada ao sentimento, a pertencer. ‘Eupertenço, então eu posso’. Como diz o poema do Vinícius, Operário emConstrução, quando a pessoa se apropria do saber, ela passa de construído aconstrutor. Não é uma questão de 2 + 2 é 4, mas de saber onde se quer chegar.Por isso, é preciso resgatar o valor das mulheres, que são muito massacradas”. Odebate estendeu-se sobre os projetos de desenvolvimento e as experiências deluta e resistência, a partir do vídeo ‘Da Margem ao Centro’, do PACS do Rio deJaneiro, onde aparecem depoimentos de pescadores, de moradores das ilhas queestão tendo cada vez mais dificuldade de pescar, de comer ou comercializar ospeixes que pescam, sofrem os efeitos da poluição, porque grandes usinassiderúrgicas que precisam de portos estão chegando, ou até mesmo são expulsosdos lugares onde moram há muito tempo.

Diz Marcos Arruda, do PACS, no vídeo: “Apalavra desenvolvimento hoje diz respeito a bens materiais, quando,originalmente, dizia respeito ao desenvolvimento dos potenciais das pessoas. Ogrande objetivo do desenvolvimento deve ser a felicidade”. FalaJardson, pescador de caiçara da Praia do Sono: “Eles fazem marina e a gente temque sair. A gente tem que se adequar às regras deles. Será que eles têm maisdireito que nós? Nós caminhamos aqui há 400 anos. Eles, menos de 30.” Ou naspalavras de seu Erasmo, pescador da Pedra de Garatiba, Baía de Sepetiba: “Aciência da vida e da letra são duas culturas maravilhosas. A ciência da vidanasce nas ilhas e na roça, que aprendi de meus pais.” Ou o pescador Ivo, doSertão de Taquari, Paraty: “Eu tenho a maior das fortunas: liberdade e o respeitodas pessoas”. Aívolta a Tatiana: “Temos plena consciência de nossa importância de sermoseducadores e de nossa responsabilidade. Nunca podemos esquecer de nossa força,do nosso poder popular. Na verdade, somos o quarto poder. Não podemos esquecer disso.Há um tripé, formação, articulação e luta, que nos orienta. Vamos lembrando aalegria quando nos trabalhos com os grupos de base alguém consegue entender.Não esquecemos do nosso compromisso com a vida, o meio ambiente”. Raquele Cláudia falam do trabalho da Rede de Educação Cidadã em Ribeirão das Neves,MG, e do lema que as orienta: “Nós amamos Neves”.

E Isabela, do Espírito Santo,lembra que o bem-viver, da raiz indígena, do cuidado, do homem integrado aomeio ambiente, a natureza como bem coletivo, não apenas servindo-se deles,implica em solidariedade, em partilha, em querer o bem dos outros. Olhandoo mundo de hoje, as crises, os valores dominantes, não há outra conclusão a nãoser que é preciso mudar de rumos. O conhecimento não pode mais ser oferecido apoucos ou estar a serviço para o lucro de meia dúzia que constrói suas marinase condomínios e não permite à maioria do povo manter sua cultura e respeitarsua cultura comunitária e de sobrevivência. Povocom auto-estima é povo feliz, é povo que sabe seu destino. Pode pensar e proporum projeto de desenvolvimento em outras bases do que estamos vendo hoje nomundo em crise. Porque sabe que o saber deve ser de todas e todos, tem corageme ousadia de estudar e aprender no frio das seis da manhã a sua própriahistória e os caminhos que deve seguir. Não é mais tempo de tutores ouiletrados. É tempo de partilha e de construção coletiva.

Selvino Heck
Em quinze de julho de dois mil e onze.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

9 + 6 =